Federação abre inquérito. Culpa do Estoril pode dar vitória ao Porto
Esta conversa termina com uma panela de arroz de tordos no Buçaco, um regresso ao passado do antropólogo que calcorreou o país para conhecer as pessoas, as paisagens por elas criadas, as mudanças. Para percebê-lo melhor é preciso ler Muitas Coisas e Um Pássaro (Sextante) que, não sendo um livro de memórias, o ajudou a ligar pontas soltas de uma vida de professor e investigador, com 22 anos na direção do Museu Nacional de Etnologia. Não esperem que diga o habitual, Joaquim Pais de Brito põe tudo em causa. O que é isto de Portugal? É uma interrogação em permanência, porque foi sendo muitas coisas, traz consigo algo que existe sempre e que não sabemos bem qual é. Mesmo essa coisa que parece supor ser contínua, permanente no tempo profundo, vai transformando-se na história, nas conjunturas várias. Os portugueses são muito diversos, tiveram muitas atividades e ocuparam território em atividades que lhe modelaram a paisagem mas que hoje já não existem, em grande parte do país, com o abandono da agricultura. E isso foi possível detetar ao longo da sua vida profissional? Depois da democratização, em 1975, 1976, quando começo o meu trabalho de campo intensivo em Portugal, em Trás-os-Montes, em Rio de Onor, toda a população das aldeias se dedicava à agricultura e à criação de animais. O transporte e a lavoura eram feitos com os animais. Com a entrada na Comunidade Europeia, muita coisa mudou, interferindo na paisagem. Começámos a ver terrenos que ainda tinham a leitura de terem sido de cultivo mas que havia anos não eram cultivados. Abandonou-se o cuidado com os lameiros, a alimentação mais rica para os animais. Os animais eram mais importantes do que os humanos nas contas da casa – davam estrume, trabalho, vitelos. Entendeu sempre a Antropologia do ponto de vista das pessoas, como são, como vão mudando. As transformações são o plano geral que dá a paisagem, que reelabora o Portugal que vemos quando o atravessamos e onde detetamos inícios de presença ou de ausência. Percebemos que há ou não há gente, o que é contraditório em absoluto e nos toca diferentemente. Desde que há gente, são as pessoas que interessam, é com elas e é o que elas traduzem da sua própria sensação e não a nossa, porque nós muitas vezes efabulamos. A sua foi uma vida cheia de partilhas? Sim. É o caso deste livro. Hesitei muito se valeria a pena publicá-lo. A Fabienne Watteau e a Ana Santos perguntaram-me como falaria do percurso profissional a partir de uns temas específicos. Foi isso que me levou a aceitar, só isso. Nunca tinha pensado escrever as suas memórias? Nem são memórias, são fragmentos a partir de um desenho, um objeto, um som, uma imagem. Faltou-nos pôr também um sabor. Aquilo levou-me a ir para a mesa de trabalho refletir. Pegando num tema que me é proposto, como é que ele me marcou, em que momentos do meu percurso ele faz sentido. Acabou por ser de uma imensa utilidade para mim, liguei uma série de pontas que estavam soltas, com muita carga afetiva e de relação intensa, desde a infância, sobretudo a adolescência, depois jovem adulto. A história pessoal, familiar, mas também a história política, a história do país, tudo isso se cerziu, sobretudo nos grandes troncos da minha atividade – professor, investigador e antropólogo – e enquanto diretor do Museu de Etnologia. No livro diz que num mundo ideal não era preciso museus. Porquê Nós reunimos coisas para facilitar a nossa inscrição no tempo. A sociedade humana não está bem no seu presente. Só em momentos de conjunturas específicas isso poderá ter ocorrido, provavelmente em situações que hoje denunciamos. Por exemplo, quando é permitido fazer coisas que em condições normais não seriam possíveis. Violência, violações, roubos, tudo isso que o contexto da guerra parece permitir. Não há momentos de euforia sem grande violência? Estou a falar do extremo paradoxal. Há momentos em que a sociedade, por conjunturas felizes e pensadas, ou até por acaso, traz a euforia do crescimento, da afirmação do presente, da festa, da produção de discurso, da partilha igualitária. Pode acontecer em contextos revolucionários ou em momentos estáveis, mas precisamos de nos referir ao passado. Uma sociedade que tivesse essa coisa absurda, horrível, de ser feliz não precisaria de museus. Construiria permanentemente o presente, uma utopia impossível. Seria horrível porquê? Uma sociedade que abdica do passado não pensa o futuro. Esse presente seria uma bolha, ficção científica. Nos grandes museus, a forma como as peças lá chegam exprime o desequilíbrio das relações desiguais na humanidade. A lei da guerra justificava o saque. Os grandes museus são isso? Os grandes museus de arte e de arqueologia são. E outros resultam do diálogo desequilibrado das situações coloniais e de dominação. Há casos em que as peças vieram com um registo mais certo, num conhecimento partilhado e cúmplice com as populações locais. Mas em geral as peças chegam com a mácula de silêncio que a história foi gerando e alimentando. Como se fosse um equívoco vermos a Vitória de Samotrácia no Louvre e acharmos maravilhoso? Haverá um dia, daqui a 50 ou 100 anos, em que os objetos dos grandes museus do Ocidente andarão a circular pelo mundo, a repor o diálogo que não fomos capazes de fazer com esses povos, com toda a África e não só, de onde muitas dessas peças vieram. Nessa altura também estarão construídas lá as condições para essas peças serem exaltadas como matéria de diálogo da humanidade, e não apenas a partir dos donos da fala. Estudou em Coimbra em 1969, em plena crise estudantil. Como foi? Foi um tempo de grande intensidade participativa, tínhamos alguém contra quem nos afirmar – o regime, a polícia de choque. Havia uma intensa criatividade. O Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra, o CITAC, teve um papel decisivo na experimentação, na intervenção, na maneira como, através das formas plásticas da construção teatral, estávamos a fazer política. Uma intervenção crítica poderosíssima. Tinha dito que fazia a tropa mas se fosse mobilizado para a guerra ia embora. E foi mobilizado. E saí naquele dia. Tinha vagamente as coisas esboçadas mas nunca sabemos, temos sempre o receio de saber como vamos sair, em que sítio vamos atravessar, como é que vamos entrar em França, ou seja, sair de Espanha. Recordo-me tão bem de tudo isso, desse sair a pé no meio do restolho à uma hora da tarde, a 19 ou 20 de março. Em Castro Laboreiro? Em Castro Laboreiro, atravessar um restolho e ter alguém do outro lado que tinha uma mula, com quem eu devia ir para ir ter a um fulano que tinha um jipe e fazia de táxi, numa aldeia próxima. Mas estavam a almoçar. E eu com um nervoso incrível encostado a Portugal, a vê-los comer umas batatas condimentadas com açafrão. Eu à espera de que eles comessem, a querer ir embora. Consigo finalmente chegar a Ourense e compro um bilhete para um autocarro para França e arranjo num hotel um quarto que nem abria a porta totalmente, devia ser o quarto das vassouras. Saí para comer qualquer coisa, entrei numa taberna e estava a cantar a Amália. Nunca esqueci esse momento, estava a Amália a cantar numa taberna em Ourense, na rádio. Como era aquele arroz de tordos que comeram no Buçaco? Um grupo de pessoas saiu de Nelas, estou a vê-los todos, há fotografias. No livro está uma fotografia que tirei e foi publicada num jornal, porque a careca do senhor Belo do Registo Civil era notável. A minha mãe preparou um arroz de tordos, num tacho grande que agora é meu, herdei-o nas partilhas entre os irmãos. Parámos no Buçaco, um sítio onde se ia para as merendas porque tem aquela água fresca que o meu pai adorava, a água que sai das fontes, onde se punha o vinho a refrescar.
“Os portugueses são muito diversos, tiveram muitas atividades e ocuparam território em atividades que lhe modelaram uma paisagem que hoje não existe” “Haverá um dia em que os objetos dos grandes museus do Ocidente andarão a circular pelo mundo, a repor o diálogo que não fomos capazes de fazer” “Comprei bilhete para ir para França, em Ourense. Saí para comer qualquer coisa, entrei numa taberna e estava a cantar a Amália na rádio”