Sim, a Autoeuropa devia pôr os olhos na Azambuja
Mais de 40 anos depois, contra todas as expectativas, a realidade fechou-se sobre a vida de mais de mil famílias. Aquelas pessoas tiveram de se deslocar ou no mínimo de reaprender a viver, de começar um trabalho diferente do que fora o de sempre e que se perspetivava de bom futuro, de encontrar novas formas de ter rendimento. Durante décadas, a Opel fora o maior empregador da região da Azambuja, pagando salários acima da média e sendo fonte de vida de todo um ecossistema de outras fábricas e prestadores de serviços acessórios, num total de mais de 600 empresas a gravitar em torno daquela grande unidade fabril. Autarquias e governo lutaram durante meses contra uma situação que se esticara até ao limite, mas o fim foi inevitável. O grupo pagou os 17,7 milhões de euros de indemnização ao Estado por não ficar por cá mais tempo e, a 21 de dezembro de 2006, acabou-se a Opel da Azambuja.
Numa reportagem da Lusa a marcar os dez anos desse momento trágico – para as pessoas, para a economia da região, para o país –, um dos sindicalistas que acompanharam o processo rejeitava responsabilidades: “Nós tínhamos um diálogo muito forte com a administração e conseguíamos acordos de ano a ano. Não estávamos num processo reivindicativo. Tínhamos era de contrariar a ideia da deslocalização.” Para os ex-trabalhadores citados na mesma peça jornalística, a imagem que perdura é distinta: “Houve exageros por parte dos sindicatos, não foram flexíveis. A imagem que passava era de um constante braço-de-ferro entre trabalhadores e administração.”
Na história nacional de uma indústria que representa hoje mais de 5,6% do PIB – perto de 11 mil milhões de euros de volume de negócios, 130 mil empregos neste cluster e cerca de 20% do investimento no país e das exportações em 2016, segundo um estudo da Deloitte publicado pela Associação do Cluster Automóvel nesta semana –, houve outras fábricas que tiveram maus momentos. Mas as coisas acabaram por resolver-se com negociações efetivas.
Foi assim que na PSA de Mangualde, por exemplo, se ultrapassou divergências de contrapartidas salariais e aumento de horas de trabalho há menos de dois anos. Exatamente a mesma fábrica que um ano depois dos atritos entre gestão e trabalhadores atraía mais duas empresas-satélites (uma espanhola e outra americana) à região e assegurava a produção de um novo modelo Peugeot-Citroën. Exatamente a mesma fábrica que em 2017 bateu os seus recordes de produção, com 53 600 carros saídos daquela unidade. Exatamente a mesma fábrica que ontem antecipou em um ano a contratação de mais 225 trabalhadores (atingindo um total que ronda os mil) para garantir um terceiro turno de forma a aumentar a produção do K9 até aos 75 mil carros. E cujo investimento na unidade já ascende a cerca de 48 milhões de euros.
Uns 300 quilómetros mais abaixo, hoje acontece mais um episódio do que tem sido o pão de cada dia no último ano da Autoeuropa. Até agora, dezenas de reuniões e propostas não foram suficientes para que se chegasse a um ponto final naquele que já é considerado o maior conflito laboral desde que a fábrica da Volkswagen abriu em Palmela, em 1991. E (quase) tudo isto por causa do trabalho ao sábado. “Lembrem-se do que aconteceu na Azambuja”, vaticinou ontem Carlos Silva, o líder da UGT.
Reler os relatos, a mágoa e a saudade impressas nos discursos de gerações que passaram pela Opel da Azambuja resulta inevitavelmente em imagens vívidas daquilo a que assistimos, muitos de nós incrédulos, agora em Palmela. Para os trabalhadores da Autoeuropa, porém, uma dúzia de anos passados parece ter sido suficiente para apagar a memória desses tempos. Depois de anos de paz social e negociações bem-sucedidas – há uma grande distância entre estas e a chantagem – conduzidas por António Chora, parece que desaprenderam tudo.
Continuam a não ser capazes de eleger uma comissão de trabalhadores realmente representativa, insistem em rejeitar acordos sucessivos e levantam a voz a intervalos cada vez mais curtos com ameaças de greve. À exceção do PCP (e por inerência da CGTP), já lhes chegaram apelos de todos os lados no sentido de mostrarem razoabilidade, mas sindicatos e um núcleo de trabalhadores – é injusto aqui tomar a parte pelo todo – batem sempre o pé. São imunes até ao fantasma da deslocalização. “Esta fábrica nunca irá sair dali. É muito simples: esta fábrica tem um departamento de prensas e isso quer dizer que nós batemos chapa para todas as fábricas do Grupo Volkswagen”, disse ainda há dias Fernando Gonçalves, o representante dos trabalhadores, enquanto por um lado se congratulava com a reabertura de negociações e por outro voltava a ameaçar com a paralisação.
Quando hoje se sentar à mesa com a administração, é bom que se recorde dos desempregados da Opel da Azambuja. Sob pena de comprometer o futuro das mais de oito mil famílias que dependem direta ou indiretamente da Autoeuropa.