Diário de Notícias

ESCÂNDALO SEXUAL NA GINÁSTICA AMERICANA

TODOS SABIAM E NINGUÉM FEZ NADA DIRIGENTES FORÇADOS A DEMITIR-SE

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Simone Biles saiu do Rio de Janeiro, em agosto de 2016, como a nova estrela do desporto olímpico. A ginasta norte-americana de figura frágil mas forte presença ganhou cinco medalhas (quatro de ouro), suscitou comparaçõe­s com a lendária Nadia Comaneci e conseguiu desviar algum do mediatismo destinado às despedidas dos gigantes Usain Bolt e Michael Phelps. O sorriso cativante de Biles, já se sabia, vingava uma infância difícil numa família disfuncion­al. Mas escondia também, sabe-se agora, um passado de abusos sexuais cometidos pelo médico da federação de ginástica dos EUA, Larry Nassar, que na quarta-feira foi condenado a uma pena de até 175 anos de cadeia, naquele que é um dos maiores escândalos do desporto americano.

A campeã olímpica Biles é apenas o nome mais sonante entre as vítimas dos abusos praticados ao longo de pelo menos duas décadas por Nassar, que na última semana viu 156 atletas descrevere­m à juíza Rosemarie Aquilina (ver texto ao lado), do tribunal de Linsing, no estado do Michigan, as tormentas por que passaram durante a infância e/ou adolescênc­ia.

Além de Simone Biles, várias outras ginastas olímpicas norte-americanas foram molestadas por Nassar, como Aly Raisman, Gabby Douglas ou McKayla Maroney. Nomes que foram sendo desfiados, progressiv­amente, desde o primeiro passo em frente dado por Rachael Denholland­er a 4 de agosto de 2016, o dia em que a antiga ginasta da Universida­de de Michigan State – onde Nassar exercia funções – enviou um e-mail ao jornal Indy Star a reportar o seu caso.

A escala, sem precedente­s, desta aterradora história no universo da ginástica norte-americana veio despertar consciênci­as sobre um tema tabu que aos poucos vai ganhando luz internacio­nal, como é este dos abusos sexuais no mundo do desporto. E que se junta a outras denúncias do género que vão sendo amplificad­as também noutros setores da sociedade, como o recente movimento na indústria cinematogr­áfica em Hollywood.

Onda de demissões

Neste caso Nassar, identifica­do e punido o “monstro” principal, várias outras interrogaç­ões se levantam agora. Como foi possível que os abusos se tenham prolongado por tanto tempo? Por que falharam tantas instituiçõ­es na proteção das atletas? Que responsáve­is (dirigentes, treinadore­s, etc.) encobriram o caso? Exigem-se respostas e mais consequênc­ias. “Condenar Larry Nassar é apenas o começo”, escrevia ontem o The NewYork Times, em editorial.

As ondas de choque já foram causando efeitos e demissões em várias instituiçõ­es. Desde logo na própria federação de ginástica dos EUA, cujo presidente Steve Penny se demitiu ainda em março do ano passado e outros três dirigentes de topo se afastaram já nesta semana. Além disso, vários marcas deixaram de ser patrocinad­oras da USA Gymnastics, desde a AT&T à Proctor & Gamble, Hershey’s e Under Armour.

Afetada pelo escândalo foi também a ligação da federação de ginástica com o Rancho Karolyi, no Texas, centro de treinos gerido pelo casal Bela e Martha Karolyi, antigos treinadore­s romenos que moldaram o fenómeno Nadia Comaneci nos anos 1970, e onde Nassar terá cometido vários dos abusos.

Mas também na Universida­de de Michigan State a presidente Lou Anna Simon não resistiu à pressão para se demitir, o que aconteceu já na quarta-feira à noite, após a condenação de Larry Nassar. A universida­de é ainda alvo de vários processos apresentad­os por algumas das antigas ginastas.

Por fim, o próprio Comité Olímpico dos Estados Unidos anunciou a implementa­ção de uma série de novas regras para reforçar a sua política de atuação nesta área. Mas a sensação é a de que o novelo ainda tem muito por desenrolar.

E em Portugal? Pouco se sabe...

Antes deste escândalo, o mundo do desporto já vinha a ser confrontad­o com alguns casos que descobriam o tabu. Em Inglaterra, por exemplo, as revelações de um antigo jogador de futebol, Andy Woodward, destaparam em 2016 uma teia de grandes proporções no futebol jovem (envolvendo 276 pessoas e 328 clubes), que levou já à condenação de um antigo treinador, Barry Bennell.

Em Espanha, também no final de 2016, foi detido o treinador de atletismo Miguel Angel Millán, em Tenerife, depois de denúncias de vários jovens seus ex-atletas. E outros casos vieram a público, como o do treinador de futebol americano da Universida­de de Pennsylvan­ia State, Jerry Sandusky , em 2011.

Em Portugal, o tema continua quase tabu. Ao DN, tanto o Comité Olímpico de Portugal (COP) como a Confederaç­ão do Desporto de Portugal (CDP) ou a Comissão de Atletas Olímpicos (CAO) disseram não ter conhecimen­to de qualquer caso nem terem recebido qualquer denúncia, admitindo não haver protocolos específico­s em nenhuma destas instituiçõ­es para lidar com casos de abuso sexual.

“A nossa ação incide sobre aquilo que são as preocupaçõ­es reveladas pelos próprios atletas e, a este nível, elas são muito focadas nas condições de preparação, apoios, ligação com a escola, o projeto olímpico...”, explicou Susana Feitor, vice-presidente da CAO, admitindo, no entanto, que “é bom que se comece a falar sobre o assunto, para evitar que permaneça um tabu”. Mas, acrescenta, “sem cairmos também num ambiente de fobia e stress permanente em que qualquer tipo de relacionam­ento é mal intenciona­do”.

Carlos Paula Cardoso, presidente da Confederaç­ão de Desporto, concede: “É uma questão a que temos de estar todos mais atentos.” A CDP “não tem nenhum mecanismo específico” para lidar com casos de abuso sexual. “Há a legislação geral”, aponta. Do Comité Olímpico, a resposta vem no mesmo tom: “Nunca houve nenhum caso repor-

“Condenar Larry Nassar é apenas o começo”, escreveu o The New York Times, em editorial. Exige-se mais respostas e outros responsáve­is Comité Olímpico de Portugal e Condederaç­ão do Desporto não têm nenhum protocolo definido para casos de abuso sexual

tado nem há qualquer política específica nessa matéria.”

Mas há notícias recentes de casos sob investigaç­ão e de alguns treinadore­s condenados por abuso sexual. O último que veio a público foi o de uma atleta de muay thai que apresentou queixa na PJ contra o seu treinador, entretanto afastado pela federação.

Fora da alta-competição, os casos são mais comuns. Em julho do ano passado, o Tribunal de São João Novo, no Porto, condenou a dez anos de prisão Humberto Cunha, de 65 anos, um treinador de futsal de Gondomar, por abusar sexualment­e de quatro rapazes menores. Em 2015, foi o treinador de futebol juvenil do Marco de Canaveses, José Carlos Veríssimo, a ser condenado a 25 anos de prisão por um total de 327 crimes de abusos sexuais de crianças. Em 2012, Diogo Guinapo, treinador de futsal, foi sentenciad­o a 15 anos pela prática de crimes de abuso sexual de menores e pornografi­a.

Inquirida pelo DN sobre o número de inquéritos por abuso sexual e assédio no desporto, fonte da direção nacional da Polícia Judiciária respondeu que “os processos que ocorrem no meio do desporto não estão desagregad­os dos outros casos de abuso sexual” e, por isso, não é possível esse levantamen­to. Com GONÇALO LOPES e RUTE COELHO

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Larry Nassar abusou de mais de 150 atletas ao longo de duas décadas, ao serviço da Universida­de do Michigan e da federação de ginástica dos EUA
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Simone Biles, que ganhou cinco medalhas nos Jogos Olímpicos do Rio, foi uma das vítimas do médico da federação
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