Diário de Notícias

PELA AMÉRICA DO TIO SILVA BRUNO DA SILVA: “HÁ CADA VEZ MAIS AMERICANOS À PROCURA DE PRODUTOS PORTUGUESE­S”

- PAULO TAVARES, em San Jose

O L&F Fish Market fica no número 1448 da Rua de Santa Clara, à beira do nó de acesso à Bayshore Freeway, o pedaço da autoestrad­a 101 que liga San Jose a São Francisco. A Igreja das Cinco Chagas, que dá nome ao bairro e é um dos polos da comunidade portuguesa em San Jose fica do outro lado da rua e na outra margem da autoestrad­a entramos em Little Portugal, o bairro que já foi o centro da comunidade e que já poucas marcas tem de presença de portuguese­s ou lusodescen­dentes.

Apesar destes sinais, foi uma surpresa ler ao longe, quando parei no semáforo de acesso à autoestrad­a, o quadro negro ao lado da porta e o anúncio escrito a giz. “Imported portuguese: wines, beer, canned goods, cheeses and olive oils. Salted bacalhau daily” (Importado de Portugal: vinho, cerveja, produtos enlatados, queijos e azeites. Bacalhau seco todos os dias). Decidi adiar o regresso a São Francisco e entrei na peixaria. Fim de tarde e Bruno estava a atender um cliente indiano que levou para casa uma embalagem de sardinha congelada. Sardinha portuguesa, claro. Bruno explica que “eles preferem as nossas sardinhas, são mais gordas, funcionam melhor com as receitas que costumam fazer.Viu que ele foi direito ao sítio, nem perguntou nada? Sabia o que queria comprar. Aqui há muita sardinha, mas são mais magras, não é a mesma coisa”.

Bruno tem sorriso fácil e fala um português de sonoridade americaniz­ada. Apesar de uma ou outra expressão em inglês, ninguém desconfia que saiu de Portugal com ano e meio e que é raro visitar

Nesperido, a pequena aldeia perto deViseu onde nasceu. Não atravessa o Atlântico há mais de uma década. Conta que, como é óbvio, não teve grande escolha nisto de viver na América.“Vim para aqui com 18 meses. Tive de vir atrás deles [risos]. A minha mãe tinha cá família, um irmão, e viemos ter com ele.” Quanto ao português despachado, de vocabulári­o completo, explica que também não teve escolha. “Lá em casa sempre falámos português. Mesmo hoje é a primeira língua em casa dos meus pais – vou lá buscar as minhas meninas daqui a pouco. A minha mãe só fala português, nunca aprendeu muito americano. O meu pai fala mais um pouco, mas sempre que se junta a família é sempre português. Os meus primos, as minhas primas, os meus tios… é sempre em português.”

O L&F Fish Market é muito mais do que uma peixaria. Ao longo de uma das paredes alinham-se prateleira­s de saudade. Sabão Clarim; Nestum mel e chocolate; papas Cerelac; pudim e mousse Alsa e Boca Doce; farinha Branca de Neve; café Sical e Nicola; inúmeras latas de conserva – sardinhas, cavala e, claro, atum; azeite da herdade do Esporão e vinagres de várias marcas; embalagens de Sumol e Compal; vinhos do Alentejo e do Douro; tremoços, azeitonas e picles; tudo, até o sal, é português. Empilhadas no centro da loja, caixas de cerveja Sagres e de garrafas de vinho e nos balcões frigorífic­os uma série de produtos congelados produzidos em Portugal. Perto da caixa registador­a, os costumeiro­s doces para seduzir crianças e dar cabo da paciência aos pais. Também são portuguese­s e até há sombrinhas de chocolate da Regina.

Bruno casou há quase três anos com a namorada e mãe das duas filhas, ela é hondurenha, as filhas têm 4 e 6 anos e lá em casa, confessa, fala-se inglês. Ainda assim, com os avós a falar só português e o interesse dos pais, as duas vão falando em três línguas. “As minhas pequeninas já entendem muito, já falam português e falam espanhol também, por causa da minha mulher. Mas na minha casa o inglês é o primeiro, depois vamos falando de vez em quando qualquer coisa em português e em espanhol, para elas irem aprendendo também.” Bruno da Silva diz que é importante essa ligação às raízes. “Elas sabem onde fica Portugal e onde ficam as Honduras. Conhecem a nossa cultura, das duas famílias. E gostam de falar e de aprender coisas sobre a história dos dois países. Acho que é uma coisa boa.”

O boné – preto com as bandeiras de Portugal e dos Estados Unidos sobreposta­s, as estrelas e as riscas pintadas a verde, vermelho e amarelo – denuncia os 35 anos de vida dupla, entre a América onde cresceu, estudou e trabalha, e o Portugal que foi aprendendo em casa dos pais e numas quantas visitas a Nesperido. “A vida tem sido boa aqui na América, sim. Mas, também não conheço outra [risos] … tem sido boa. O meu pai começou aqui a trabalhar praticamen­te desde que chegou à América. Foi empregado, depois comprou e ficou na nossa família.” E como é que alguém que está à frente de uma espécie de embaixada informal de Portugal mantém a ligação ao país? Mal, confessa: “Já não vou lá há uns dez ou onze anos, mas sim, quero lá ir com as minhas filhas e a minha mulher. Os meus pais é que costumam lá ir, vão a Portugal de dois em dois anos. Eu tenho aqui muito trabalho e alguém tem de ficar a tratar do negócio.”

Ora, e como vai esse negócio? Os portuguese­s, que as várias bolhas imobiliári­as em San Jose já empurraram para longe dos bairros onde se fixavam desde os anos 1960, ainda por aqui aparecem? “Oh yeah! Isto sempre foi uma peixaria e uma loja portuguesa. Temos muitos clientes. So… o público todo português não está só nesta zona do vale, aqui em San Jose e ao sábado vem muita gente de fora do vale, chegam a fazer duas ou três horas de carro para comprar os produtos portuguese­s. Não há muitas lojas que tenham as coisas que nós aqui temos.” Esta faixa do mercado – da saudade – está garantida, mas nos últimos tempos Bruno tem notado um interesse crescente nos produtos que vende no L&F Fish Market. “Temos muitos clientes que não são portuguese­s. Muitas nacionalid­ades.Vêm sobretudo pelo peixe fresco, mas também gostam de comprar o atum e as sardinhas de conserva ou queijos portuguese­s… vêm também por causa das ‘padarias’ portuguesa­s, as massas sovadas. Temos de servir a todos.” Mais do que a moda de Portugal enquanto destino, Bruno fala do passa-a-palavra. “Yeah! Temos tido mais procura. Aparecem aqui e dizem que têm um amigo ou um vizinho português, trabalham com alguém de Portugal. Perguntam pelas sardinhas em lata portuguesa­s, pela linguiça, pelos queijos. Cada vez mais gostam de experiment­ar coisas diferentes.”

Num recanto da loja, caixas de bacalhau. Bruno da Silva enche-se de orgulho quando diz que ali, na loja dele, há sempre bacalhau. “Todos os dias temos bacalhau. Muitas lojas só o vendem na Quaresma ou no tempo do Natal, mas nós temos sempre. E não é só para os portuguese­s. Temos muitos italianos, indianos, muita gente de África, da Jamaica… e muitos americanos, que também já usam o bacalhau seco.” Perante a minha cara de espanto, explica que há muita gente a cozinhar o peixe que julgamos ser quase só nosso. “Eles têm as suas receitas. Eu gostava de experiment­ar. Não sei que receitas é que eles usam, mas gostava de saber [risos]. O bacalhau é daqueles peixes que pode fazer-se de mil e uma maneiras e não há uma maneira enganada para fazer.”

Já com a loja quase a fechar entra um cliente, português. A encomenda estava preparada. Um saco de chicharros dos Açores. Frescos. Tinham chegado há pouco tempo. O preço foi negociado, quase não baixo e a encomenda passou de quatro para três chicharros.Volto a ligar o gravador. Mas também tem peixe dos Açores? “Sim, sim. Três ou quatro vezes por ano fazemos uma encomenda. Sai caro, mas vale a pena. Há muitos clientes para esse peixe. Aparece aqui gente que vem de muito longe para comprar o peixe dos Açores. Vem aqui malta que chega a fazer quatro ou cinco horas de carro. Nós avisamos. Os fregueses sabem pelo Facebook ou pela rádio. Faço anúncios na rádio portuguesa.” Bruno conta que uma remessa típica tem entre 400 e 800 quilos de peixe. “Costumam vir uns dez congros, com 25 quilos cada um, umas caixas de moreia, abróteas, besugos, chicharros grandes, garoupas, cantaril, vejas, peixe-espada, sargos. Vem muita coisa. Às vezes vem sardinha, mas é muito raro.”

A peixaria de Bruno parece preparada para resistir ao tempo. Em conjunto com uns quantos restaurant­es e cafés, e descontand­o a igreja, as casas do Benfica e do Sporting, a rádio, o jornal e outras instituiçõ­es, é o que resta de um tempo em que por aquelas ruas quase só se ouvia falar português. Agora, em Little Portugal, é mais fácil ouvir espanhol. Bruno da Silva explica esse movimento na comunidade: “Há uns dez anos ou assim que isto acontece, as casas começaram a ficar muito caras, o pessoal começou a vender e foi para o vale. Lá compra-se uma casa por um quarto do preço que se compra aqui. A comunidade ficou mais afastada, já não estamos todos juntos aqui em San Jose.”

“Temos tido mais procura. Aparecem aqui e dizem que têm um amigo ou um vizinho português, que trabalham com alguém de Portugal. Perguntam pelas sardinhas em lata portuguesa­s, pela linguiça, pelos queijos...”

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Bruno da Silva frente à sua peixaria, um negócio de família onde o pai começou a trabalhar quando chegou aos Estados Unidos.
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Cliente sorri enquanto se prepara para pagar três grandes chicharros frescos, vindos dos Açores (em cima). Prateleira­s de saudade. Vista do interior (à esquerda) de uma peixaria que está longe de ser apenas uma peixaria
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