Secretas não têm “meios, mandato legal ou preparação para o trabalho”
A eurodeputada Ana Gomes é a coordenadora dos socialistas e do Parlamento Europeu na Comissão Especial sobre o Terrorismo (TERR), criada em julho de 2017, e nessa qualidade já visitou vários países para avaliar a execução e os resultados das políticas de prevenção e combate contra esta ameaça global. Em Portugal já teve as primeiras reuniões e deixa nesta entrevista as suas preocupações. A Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo (ENCT) faz em fevereiro três anos e só agora alguns dos planos que prevê estão a ser concluídos. Como coordenadora na Comissão TERR que avaliação faz de Portugal? Se não passar do papel nenhuma estratégia faz sentido. Ando a reunir com diferentes autoridades e estruturas nacionais para perceber se essa estratégia está a ser aplicada ou, pelo menos, se orienta medidas de capacitação, de preparação, de prevenção, de análise, de cooperação, etc. Não tenho dúvidas de que em alguns setores – como na Polícia Judiciária e no Ministério Público – temos gente muito capaz, que faz a diferença, incluindo na cooperação no plano europeu e internacional. Não sei se os serviços de informações, incluindo militares, estruturas de cibersegurança, serviços prisionais e estruturas locais das forças de segurança, poderes municipais, entre outros, estão a ser envolvidos ou sequer sensibilizados para uma tal estratégia. E quais são as maiores preocupações com o nosso país? É óbvio que existem riscos para Portugal, ainda que não sejam tão elevados como na Bélgica, em França, no Reino Unido e até na vizinha Espanha. Portugal foi até hoje um país de recuo e apoio logístico para alguns terroristas. Penso que temos forças policiais competentes e capazes, mas precisam de mais meios e melhor articulação interna, incluindo para a proteção de infraestruturas críticas e o espaço público. Chamar-me-ão alarmista, mas não posso deixar de fazer notar que o boom turístico pode desmoronar-se com qual- quer ataque low-cost, como os que aconteceram em Sousse ou no Museu Bardo, na Tunísia. Temos de investir na intervenção social a nível local, cuidando da integração de pessoas e de comunidades em risco de serem infiltradas. E temos de estar muito atentos a apoios financeiros e a outros que ajudam a infiltrar proselitismo extremista e organizações criminosas que frequentemente atuam em conjugação com os grupos terroristas, de traficantes de drogas e armas a traficantes de seres humanos, incluindo no recurso a esquemas de branqueamento de capitais através do nosso sistema financeiro. O financiamento saudita de mesquitas deve alertar as nossas autoridades a nível nacional e local. Não devem embandeirar em arco e aceitar apoios financeiros de fontes sauditas e de outros países do Golfo para apoiar a construção de mesquitas e estruturas sociais associadas, ou para aceitar responsáveis ou pregadores cujo discurso proselitista ninguém segue ou controla. Mas há uma suspeita concreta desse género de financiamentos em relação a Portugal? Que eu saiba não, nada se terá concretizado. Mas, segundo informações que me chegaram, há ofertas de financiamento a autoridades locais, onde há comunidades muçulmanas. O melhor é alertar e não aceitar, tendo em conta a experiência noutros países europeus. A Bélgica, por exemplo, acaba de obrigar a retirada de financiamento saudita à mesquita central de Bruxelas, que previa livros com proselitismo extremista e pregadores em árabe com mensagens perigosas. As autarquias e as estruturas locais estão a ter algum papel na prevenção da radicalização, como defendeu há um ano o primeiro-ministro, António Costa? Há experiências noutros países? Como já referi há pouco, ainda estou a recolher informações sobre o que está efetivamente no terreno em Portugal. Mas essa abordagem indicada pelo primeiro-ministro é indispensável, em paralelo, claro, com a capacitação a outros níveis. Tem sempre de haver também uma perspetiva holística, um investimento na educação, na proteção social, na integração, na cultura e na reintegração – em particular dos reclusos (muito do recrutamento jihadista faz-se nas prisões por essa Europa fora). Faz todo o sentido que as autarquias coordenem e estejam ativas neste trabalho, porque estão próximas das comunidades, conhecem a realidade local, os fatores de risco e podem atuar utilizando os meios locais – seja na mobilização e no apoio das famílias, escolas, centros culturais, espaços de convívio, de desporto, etc. Obviamente, tem de haver também apoio político e financei-
ro dos governos, que, por outro lado, devem ter estratégias de combate ao desemprego, de habitação social, de criação de oportunidades, de combate à discriminação – há bairros por essa Europa fora que são verdadeiros guetos. Enfim, precisamos de investimento na inclusão social – tudo aquilo que tem sido desvalorizado nos últimos anos em que se impôs o paradigma da austeridade. Mas há exemplos positivos noutros países: visitei há tempos a comuna de Malines (Mechelen), na Bélgica, uma das que mais exportaram jovens da emigração para as fileiras jihadistas do Estado Islâmico na Síria. Até que o presidente da câmara lançou um programa integrado, com forte investimento social e interação entre polícias, famílias, escolas, clubes, para detetar, contrariar e travar o recrutamento terrorista, incluindo e mobilizando um grupo de académicos muçulmanos para combater a narrativa pseudorreligiosa dos terroristas, que hoje operam muito nas redes sociais e cada vez tendo mais por alvo jovens do sexo feminino. Sem mobilizar, envolver e apoiar as nossas comunidades muçulmanas não venceremos a ameaça jihadista na Europa. Que trabalho está a desenvolver a Comissão TERR? Criámos esta comissão para avaliar e fazer recomendações sobre o que as autoridades europeias estão (e não estão) a fazer para combater eficazmente o terrorismo. A comissão tem um mandato de um ano, ao fim do qual publicará um relatório de avaliação e escrutínio político dos esforços e medidas tomados pela UE e pelos Estados membros no combate ao terrorismo. Compreendemos que esta é uma das principais preocupações dos cidadãos europeus face aos ataques terroristas ocorridos em solo europeu e golpeando cidadãos europeus em muitos pontos do globo, nos últimos anos. Qual é a situação nos países e entidades que já visitou? A comissão já efetuou missões à Haia, na Holanda, e às agências para a cooperação policial e judiciária lá sediadas – a Europol e a Eurojust –, missão em que participei. Houve também uma missão a Paris. Estão agendadas para o próximo mês missões a Londres, a Berlim e depois a Madrid e à Catânia (Itália), proporcionando discussões com autoridades e operadores em todos os domínios. Penso que há muito a fazer na prevenção da radicalização e nos esforços de promover a desradicalização, no funcionamento da cooperação policial entre Estados membros e ainda nos esforços para impedir o financiamento do terrorismo. Fui relatora-sombra do Parlamento Europeu na IV e na V Diretiva antibranqueamento de capitais e cheguei à conclusão de que os Estados membros estão em negação sobre o que é necessário para combater o financiamento do terrorismo e das redes de criminalidade organizada a ele associadas: passa muito pela transparência empresarial e financeira, pelo controlo e escrutínio de transferências de capitais e por um sistema de supervisão mais eficaz nos controlos que faz e nas sanções que aplica. As medidas securitárias são mais populares do que as preventivas... As medidas securitárias, em geral anunciadas a quente depois de um atentado, normalmente são ineficazes e contraproducentes: nunca se podem negligenciar os princípios do Estado de direito e os direitos fundamentais dos cidadãos. Destruí-los é o objetivo dos grupos terroristas. Ignorá-los é fazer o jogo dos terroristas. A prevenção da radicalização e o apoio à desradicalização implica todo um investimento holístico na vertente social, cultural, de integração, de inclusão social e de criação de oportunidades para os jovens, em especial di- recionada para segundas e terceiras gerações em comunidades de emigração, que têm sido abandonadas pelos Estados membros nos últimos anos – não é com investimento securitário que contrariaremos a propaganda dos recrutadores de terroristas: mais do que a religião, eles exploram as disfunções sociais e o seu reflexo nos indivíduos. Além de uma estratégia de narrativa contraterrorista que temos de difundir nos media, nas redes sociais, nas redes locais, nas escolas, nos locais de culto, é preciso dar-lhe substância prática. Incluindo nas prisões, que em vários países europeus em vez de serem centros de reabilitação são verdadeiros centros de radicalização. E é preciso investir, ajudar a afirmar-se um islão europeu compatível com os valores, os direitos e as garantias europeus, em especial nos direitos das mulheres. Não é possível que governos europeus continuem a aceitar que locais de culto, escolas e estruturas sociais na Europa sejam controlados, financiados e instrumentalizadas por clérigos que pregam o ódio, extremismo violento e ideologia medieval, exportados por redes salafistas e wahabistas. A partilha de informações e a cooperação policial, judicial e da intelligence é um problema em todos os países? É preciso investimento em recursos humanos, equipamento e em capacidades (incluindo análise, investigação, línguas, ciber, articulação civil-militar), e serão precisos anos e muita pressão política para melhorarmos. Já há mecanismos eficazes e rápidos de comunicação e de partilha de informação, mas esta é uma área em que muitos Es- tados membros – em especial os maiores – têm relutância em cooperar e partilhar informação, com tradições de investigação diferentes, habituados a proteger a sua própria intelligence, meios e fontes. Ainda há muito a fazer para haver confiança mútua alargada. A proposta de uma unidade de Intelligence europeia (exigindo um efetivo controlo democrático de que a maior parte dos Estados membros não vê ser realmente exercido a nível nacional) encontra muita oposição. Até porque os níveis de ameaça terrorista e as prioridades de segurança variam muito entre os Estados membros. Que outras preocupações tem a comissão neste momento? Não podemos fechar os olhos à ameaça da violência extremista e ao terrorismo da extrema-direita, que fomenta e se alimenta da retórica xenófoba que amalgama terroristas com muçulmanos, migrantes e refugiados. É preciso não esquecer que são muçulmanos a maior parte das vítimas do Estado Islâmico (EI), da Al-Qaeda e de outros grupos terroristas que invocam perversamente o islão. Muitos dos refugiados e migrantes estão a fugir desses grupos terroristas e do impacto da sua ação nos seus países – por exemplo na Nigéria, onde atua o Boko Haram. Os que na Europa defendem uma visão ultrassecuritária e vivem obcecados com o regresso dos chamados foreign fighters (combatentes es- trangeiros) do EI, deviam reconhecer que a esmagadora maioria deles nasceu na Europa e interrogar-se como e porque foram radicalizados e porque não tivemos políticas para travar a sua radicalização. A maior parte dos atacantes na Europa, até hoje, nasceram, cresceram e radicalizaram-se na Europa. Como impedir esse processo é a chave para desarticular a ameaça terrorista. Como é que o nosso país é olhado lá fora em relação a esta matéria? Penso que existe uma boa imagem das nossas forças policiais e de segurança, e da nossa cooperação no domínio da partilha da informação a nível europeu. Ainda recentemente na Europol a delegação do Parlamento Europeu ouviu louvar a cooperação portuguesa, através da Polícia Judiciária, na desarticulação e na prisão de uma célula terrorista que planeava ataques em França, com indivíduos já referenciados na Alemanha por criminalidade comum. O nosso sistema de segurança interna, com várias polícias, será o melhor para esta enfrentar esta ameaça? A estrutura não será o principal problema. O que é preciso é que cooperem e partilhem informação e acesso a bases de dados. Francamente, preocupa-me mais que os serviços de informações não tenham meios, nem mandato legal, nem porventura cultura e preparação para fazer o trabalho que deviam fazer.
“Se não passar do papel nenhuma estratégia faz sentido” “Temos polícias competentes, mas precisam de mais meios e melhor articulação interna” “O boom turístico pode desmoronar-se com qualquer ataque low-cost, como os que aconteceram em Sousse ou na Tunísia” Preocupa-me que os serviços de informações não tenham meios, nem mandato legal, nem porventura cultura e preparação para fazer o trabalho que deviam fazer”