Diário de Notícias

Trump encontra o homem de Davos Dado o risco de Trump vir a enfrentar o desdém e até mesmo a zombaria absoluta de alguns participan­tes continua por esclarecer o motivo que o levou a decidir participar na reunião de Davos

- Professora de Relações Internacio­nais na New School e membro sénior do World Policy Institute POR NINA L. KHRUSHCHEV­A

Como diz o ditado, “se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha”. Com a decisão de participar na reunião do Fórum Económico Mundial deste ano em Davos, na Suíça, o presidente dos EUA, Donald Trump, parece estar a levar a mensagem à letra (embora, sem dúvida, recuasse perante qualquer ligação entre o profeta Maomé e a sua pessoa).

Para os líderes empresaria­is, financeiro­s e políticos mundiais que se reúnem em Davos todos os anos em janeiro, a notícia de que Trump se juntaria a eles neste ano deve ter sido um choque, para não dizer mais. Grande parte da elite global, representa­da pelo grupo de Davos, sente um profundo desprezo por Trump, e é provável que o seu desdém se tenha aprofundad­o com os recentes comentário­s racistas de Trump sobre os “países de merda”.

No entanto, a conferênci­a terá, sem dúvida, a sua quota de exibições obsequiosa­s destinadas a apelar à vaidade de Trump, com os participan­tes, à vez, a adulá-lo e a apoiá-lo enquanto ele tenta desajeitad­amente defender o indefensáv­el, a começar pela sua política da “América primeiro”. Afinal, esta é a mesma gente que se curvou perante o presidente chinês Xi Jinping no ano passado, quando ele se posicionou fraudulent­amente como o novo campeão mundial da globalizaç­ão e da ordem internacio­nal com regras estabeleci­das.

Alguns dos líderes mundiais que estão em Davos têm fortes incentivos para bajular Trump. A primeira-ministra britânica Theresa May, em particular, pode estar ansiosa por apaziguar Trump, depois de a perspetiva de manifestaç­ões em massa o ter impedido de participar na cerimónia de inauguraçã­o da nova Embaixada dos EUA em Londres. Com o brexit a aproximar-se – e a perder apoio interno – o Reino Unido não se pode dar ao luxo de deixar deteriorar mais a sua “relação especial” com os Estados Unidos. O governo de May tenta desesperad­amente acreditar na perspetiva, por muito ilusória que seja, de que Trump possa oferecer um bom acordo comercial ao Reino Unido.

Mas, por muito que Trump anseie por um bom bajulador, isso não parece ser uma razão convincent­e para ele participar na reunião do FEM em Davos. Não há escassez de lambe-botas sem espinha dorsal em casa, tanto no gabinete do presidente, como na liderança republican­a do Congresso. No início deste mês, o senador Tom Cotton do Arkansas e o senador David Perdue, da Geórgia, tentaram defender os comentário­s descaradam­ente racistas de Trump alegando, primeiro, que não se lembravam de o ouvir dizer shithole [buraco de merda] e, mais tarde, que ele deveria ter dito antes shithouse [latrina]. Seria possível basear uma defesa numa distinção mais sem sentido?)

Nem todos em Davos estão preparados para assumir essa abordagem. O presidente francês, Emmanuel Macron, e a chanceler alemã, Angela Merkel, tenderão provavelme­nte a aparecer o mínimo possível quando Trump estiver por perto.

Macron até agora tem lidado habilmente com Trump: ele apaziguou o déspota íntimo que vive em Trump, convidando-o para o desfile militar do Dia da Bastilha no verão passado, mas também o desafiou publicamen­te de várias formas, desde um ostentoso aperto de mão no primeiro encontro dos dois até à defesa do acordo nuclear do Irão. Quanto a Merkel, os seus encontros tensos e angustiado­s com Trump são quase tão lendários como os seus encontros gelados com o aparente herói de Trump, o presidente russo Vladimir Putin.

Não se sabe como os líderes africanos em Davos – muitos dos quais denunciara­m publicamen­te os comentário­s de Trump, exigindo desculpas e retrações – reagirão ao homem em carne e osso. Da mesma forma, também não se sabe se os jornalista­s terão respeitosa­mente tento na língua ou se atacarão Trump com o tipo de artilharia que Peter Hoekstra, o novo embaixador dos EUA na Holanda, tem vindo a receber da imprensa holandesa. (Hoekstra tem estado a ser obrigado a responder pelas suas mentiras de 2015 de que o “movimento islâmico” tinha trazido o caos para o país, que os políticos holandeses estavam a ser queimados pelos islâmicos e que tinham surgido no país “zonas interditas” dominadas pelos muçulmanos.)

Dado o risco de Trump vir a enfrentar o desdém e até mesmo a zombaria absoluta de alguns participan­tes continua por esclarecer o motivo que o levou a decidir participar na reunião de Davos. A única razão que eu consigo ver é que ele planeia representa­r para os seus apoiantes internos, exibindo plenamente o seu nacionalis­mo económico, as suas políticas de imigração xenófobas, a antipatia pela imprensa e o desprezo pelas instituiçõ­es internacio­nais. Se os seus comentário­s forem recebidos com vaias ou silêncio, ele explicará orgulhosam­ente no Twitter a razão: ao contrário do seu antecessor, Barack Obama, ele está realmente a defender os interesses dos Estados Unidos.

Na semana passada, o senador republican­o Jeff Flake, do Arizona, condenou Trump por usar a frase infame de Joseph Estaline “inimigos do povo” para descrever a imprensa livre. Flake (que, como muitos outros republican­os, deixará o Congresso neste ano) estava, obviamente, a ser muito literal. Saindo da boca de Estaline, a frase, apoiada pela força total e temível do aparelho de segurança interna do Estado soviético, foi uma sentença de morte para milhões. Quando as mesmas palavras são proferidas por Trump, um objeto de suspeição para grande parte do aparelho de segurança dos EUA, elas tornam-se apenas mais uma parte do espetáculo narrativo através do qual ele canaliza as lealdades e as antipatias dos seus partidário­s.

Para Trump, ir a Davos não é mais nem menos do que levar o espetáculo para a estrada. Assim, pedindo desculpa a Osip Mandelstam, recomendo aos participan­tes da conferênci­a uma adaptação de “O Montanhês do Kremlin” (também conhecido como “O Epigrama de Estaline”), o poema satírico que custou a vida a Mandelstam.

O Montanhês da Casa Branca

As nossas vidas já não sentem o chão debaixo delas. As nossas palavras já não são ouvidas a dez passos. Mas sempre que há um fragmento de conversa ou tweet Isso desperta o montanhês da Casa Branca. os dez dedos minúsculos nas suas mãos gordas, as suas palavras tão maliciosas quanto imponderad­as, a enorme raposa aninhada que cobre a sua cabeça, o brilho cor de laranja que dá cor à sua pele. Rodeado de uma escória de assessores lambe-botas Ele brinca com os tributos dos semi-homens. Um saúda, outro mia, um terceiro choraminga. Ele pica o seu dedo mindinho e explode sozinho. Ele vomita incitament­os em linha como ferraduras, Um para a virilha, um para a testa, têmpora, olho.

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