“Estamos a ver no assédio o que se passou no início com a violência doméstica”
FERNANDA CÂNCIO
Anália Torres, investigadora e professora catedrática de Sociologia no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, fundadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, coordenou em 2015 um estudo sobre assédio sexual em meio laboral que coloca Portugal entre os países da Europa com maior taxa de assédio.Vê a atual “onda” de denúncias como “um movimento sem retorno”.
É como se de repente, em termos mediáticos e até políticos, se tivesse descoberto que existe assédio sexual e que é um problema, que não pode ser desvalorizado. Como vê esta súbita descoberta? Há muitos anos que os movimentos feministas andam a denunciar o assédio sexual. A questão é sempre saber como estas questões são vistas pelas pessoas fora do movimento. Nos EUA houve um momento importante no qual o verniz estalou: quando Trump se assumiu um assediador. Percebeu-se a contradição completa entre os discursos que se fazem sobre a total igualdade entre mulheres e homens e a existência de um presidente eleito que é um sexista, um assediador. Isso coincide com a existência de uma geração de mulheres mais jovens que começa a despertar para estas questões e se sente prejudicada. E quando começam a denunciar dá-se o efeito de se sentir que se pode falar. O exemplo é muito importante. Não tem também que ver com a desnaturalização de certos comportamentos, a ideia de que não se tem de suportar certas coisas? Sim. Uma das coisas que comecei a estudar no início da carreira foi o divórcio – constatei que as pessoas deixaram de suportar situações insuportáveis. É um processo, o de não aceitar mais a menorização da mulher. É algo de que tenho falado muito, que tem que ver com passar da ideia de mulher-natureza para mulher-indivíduo. No caso do assédio nas relações laborais tem muito que ver com o facto de as mulheres verem o trabalho como lugar de realização, e não algo acessório ao papel de mãe e esposa. O caso de Larry Nassar, médico de desportistas de alta-competição, inclui vítimas que são crianças e adolescentes. Mas tem-se incluído no assédio, quando é abuso de menores. Provavelmente se fossem rapazes falar-se-ia de pedofilia. Há mulheres que tinham 6, 13 anos à época do abuso. É interessante, porque é uma forma de naturalizar o assédio sexual das mulheres por homens: mesmo sendo crianças, não é colocado no campo do anormal. No seu estudo, conclui que 12,6% da população ativa já foram vítimas de assédio sexual no trabalho; nas mulheres a percentagem é 14,4%. É muito ou pouco, comparando com outros países? É muito elevado. Mas desceu muito em relação a um inquérito semelhante de 1989, de Lígia Amâncio e Luísa Lima, que chegava a 34,1%. E importante constatar que em 1989 as mulheres diziam “fiz de conta que não notei”. Hoje dizem: “Mostrei desagrado de imediato.” Surgiu uma denúncia de uma jovem desportista de muay thai em Portugal, mas tem havido muito poucas por cá. As portuguesas ainda não estão capazes? No inquérito as pessoas diziam que mostravam desagrado mas pouco mais. A ideia com que fiquei foi que tinham pouca capacidade para denunciar. Há fatores muito importantes para que se avance: a condenação moral do ponto de vista social, o compromisso das empresas e organizações em geral, de cima a baixo (há empresa nos EUA em que as chefias intermédias são responsabilizadas), o compromisso político no sentido de haver leis, e a ação a nível jurídico e judicial. Mas creio que o que estamos a viver agora em relação ao assédio é a primeira fase do que se passou na violência doméstica nos anos 1990, quando se começou a denunciar. A consciência social em relação à violência doméstica hoje está muito mais forte – estas coisas são um processo de longo curso. E por isso acho que é um movimento sem retorno, o da luta contra o assédio sexual. Pode haver movimentos de recuo – ninguém gosta de perder privilégios, e os homens têm um poder, um ascendente sobre as mulheres que custa a perder –mas não vai parar. Como dizia William Goode, as boas ideias, como liberdade e igualdade, são muito atrativas e viajam depressa.