Lápide em igreja desvenda mistério sobre o cronista Fernão Lopes
Acaso levou o investigador João Torcato a reparar na inscrição existente à entrada da igreja matriz. Dois anos depois publica, com o historiador José d’Encarnação, os fundamentos da tese que parece resolver enigma histórico
Porta da igreja abre para a direita e tapa por completo, além de preservar, o nome que ali está inscrito desde os meados do século XV
Um mistério com mais de 500 anos na História de Portugal, sobre quem foi o cronista Fernão Lopes, pode ter chegado ao fim com a descoberta desse nome numa lápide à entrada da Igreja Matriz do Alandroal, vila do distrito de Évora.
“Acho que é uma contribuição definitiva para estudar um homem sobre cuja vida não se sabe nada”, defende ao DN João Torcato, um investigador que trocou a vida na capital pelo regresso ao Alandroal – “terra pequena e perdida no meio da planície alentejana” onde esta descoberta “é uma mais-valia em termos culturais e turísticos”.
A descoberta é publicada amanhã na edição online da revista especializada Al-Madan, num artigo coassinado por João Torcato e pelo historiador José d’Encarnação, contactado pelo primeiro enquanto especialista em epigrafia para analisar as inscrições naquela pedra mármore.
“Nunca se tinha pensado nem se sabia onde Fernão Lopes estava sepultado”, assinala José d’Encarnação ao DN. Agora, embora com as reservas naturais dos investigadores, este catedrático justifica a conclusão de os restos mortais do quarto guarda-mor da Torre do Tombo estarem na Igreja de Nossa Senhora da Graça com o conjunto de factos que até aqui não tinham explicação.
“Apontamos para ser o cronista porque temos uma explicação para o privilégio, para a importância dada a essa zona” por Fernão Lopes nos textos que escreveu, observa José d’Encarnação, enquanto João Torcato evoca os nove capítulos da Crónica de D. João I que o autor dedica ao Alandroal numa época – a crise de 1383-1385 – em que aí “praticamente não houve nada de relevante” e quando “o país estava num estado de guerra absoluto”. Exemplos? As batalhas dos Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota e Valverde.
Fernão Lopes é considerado o fundador da historiografia portuguesa e até agora apontava-se para Lisboa como local de nascimento (entre 1380 e 1390) e morte (cerca de 1460). Além de responsável pelos arquivos da Torre do Tombo, foi o autor das crónicas sobre os reis D. João I, D. Fernando e D. Pedro, bem como de outros monarcas cujos textos desapareceram. A sua escrita era marcada pela objetividade e fundamentada, que rompia com as tradições da época e onde, lembra João Torcato, os membros do povo passaram a ser protagonistas.
“Ele era um escritor cuidadoso e meticuloso”, que procurava “escrever só a verdade”, pelo que “é estranho” falar tanto do Alandroal naquele período crítico da independência face a Castela, insiste o artista plástico. Porta fechada Foi por acaso que João Torcato, presidente da cooperativa sociocultural Mouro M’Fez, reparou há cerca de dois anos na inscrição ainda legível naquela pedra tumular “quando ia a sair da igreja, que estava fechada para limpezas. “Já tinha estudado várias coisas sobre Fernão Lopes. Quando percebi que havia um vazio tão grande sobre a vida dele, o que é estranho, comecei a estudar a questão com mais profundidade.”
“Tem sido um processo de reflexão” de dois anos e feito com algum secretismo, prossegue João Torcato, em que “começou a fazer sentido” o que ia lendo à luz daquela hipótese. “O facto de ainda ninguém ter identificado a tumba” com a inscrição “Fernão Lopez” é, explica o investigador, “porque a porta tapa o nome” quando se “abre para a direi- ta” – e é esse facto que também terá garantido a legibilidade daquela primeira linha de texto na pedra tumular, quando a generalidade das outras inscrições quase desapareceu devido ao repisar dos crentes desde os meados do século XV.
José d’Encarnação subscreve essa hipótese sobre o “porque é que nunca se tinha visto a inscrição” que, revelam os autores no texto publicado na Al-Madan, “corresponde ao formulário habitual do século XV” e em que o apelido Lopes se escrevia “com Z, como era normal na época”. Certo é que até agora, confirma o historiador, “não havia nada escrito sobre a existência da lápide” com o nome do cronista na Igreja Matriz do Alandroal.
Mas poderá aquele nome corresponder a outra personagem que não o famoso cronista? “É uma pergunta perfeitamente legítima”, sublinha José d’Encarnação, mas os elementos informativos existentes levam a concluir que só pode ser o autor da Crónica de D. João I.
Além de referir exaustivamente a vila do Alandroal, a única vila do Alentejo cujo brasão de armas é semelhante ao da Casa de Avis (dominante naquela zona fronteiriça), a existência de um convento que funcionava como escola – explica a erudição que o caracterizava e permitiu a alguém de origem humilde chegar a guarda-mor da Torre do Tombo – e lhe permitiu ser conhecido pelos responsáveis da Ordem de Aviz, destacam os autores.
Acresce o pormenor, regista ainda João Torcato, de as pessoas nessa época “serem sepultadas na terra natal” para reforçar a tese de que Fernão Lopes é natural da vila do Alandroal.
E agora? O investigador diz estar “fora de questão” pedir o levantamento da urna para investigar se ainda ali estão algumas ossadas e a quem pertencem. “Agora não”, assegura, embora admitindo essa possibilidade se a iniciativa “partir do mundo académico”. O facto de a Igreja Matriz do Alandroal ter sofrido várias obras de remodelação ao longo destes séculos e de a própria pedra tumular estar partida não dá garantias de que ainda haja algo por baixo, conclui João Torcato.