Naomi, a Rebitadora, e Larry, o pobre diabo
Ela, um avanço; ele, um derrotado – coincidindo ambos num mero acaso, faziam um par que lembrava que a relação entre mulheres e homens progride
Entre os meus deuses preferidos está o das coincidências. Esse deus é melhor a fazer coincidir do que as nossas polícias a crismar casos sob investigação. Há uns tempos houve furtos organizados em farmácias e, vai daí, apareceu uma Operação Cruz Verde... De outra vez, um caso de evasão fiscal e, tungas, saiu uma Operação Questor... A evidência da primeira tem a banalidade do piscar dos letreiros das farmácias, a pedantice da segunda é de quem aprendeu latim no seminário e quis mostrar saber que questor era o coletor de impostos na antiga Roma. Ambas fracotas. Já as coincidências divinas são maravilhosas.
Sábado passado, morreu Naomi Parker, uma chica poderosa; e, anteontem, quarta, vimos Larry Nassar, pobre diabo, a escutar a sentença a que foi condenado. Três quartos de século separaram a gloriosa imagem de uma da patética foto do outro. Tanto tempo passado – 75 anos têm quase 4000 semanas – para fazer cruzar dois destinos opostos. O deus das coincidências sabe mandar-nos fantásticos recados. As mensagens eram claras. Ela, um avanço; ele, um derrotado – coincidindo ambos num mero acaso, faziam um par que lembrava que a relação entre mulheres e homens progride. Mas melhor ainda do que as mensagens foi a escolha das imagens que as ilustram.
Naomi, calhou ser ela, menina bonita de cara com traços fortes, 20 anos, era mais do que ela: tornou-se o símbolo das mulheres que na América, entrada na Segunda Guerra Mundial, irromperam pelo mundo do trabalho, por mais duro que fosse, por mais tradição que tivesse sido até então ser só dos homens. Os rapazes partiram para a guerra e as mulheres substituíram-nos nas fábricas.
Em 1942, a empresa elétrica Westinghouse, que se reciclava no esforço de guerra produzindo aviões, contratou o desenhador J. Howard Miller para fazer cartazes sobre essas mulheres operárias. Inspirado numa foto de Naomi Parker, que trabalhava numa fábrica de aviação na Califórnia, Miller desenhou a operária, lenço vermelho com pintas brancas na cabeça, camisa azul do fato-macaco de manga arregaçada mostrando bíceps poderosos.
A posição dos braços é muito parecida à do manguito do nosso Zé Povinho, “Queres fiado...”, mas a mensagem é mais política: “We Can Do It!”, “Nós podemos fazê-lo!”, gritava o cartaz. Tornou-se icónico. Décadas depois até a política o plagiou: o cartaz reapareceu em 2008, a candidata a vice-presidente conservadora Sarah Palin usou-o e, em 2016, a candidata presidencial democrata Hillary Clinton, também. Ironicamente, ambas sem sucesso. As imagens claras dão-se mal em pastiches.
Os cartazes “We Can Do It!” inseriam-se, já o dissemos, num poderoso movimento social – entre 1940 e 1944, cinco milhões de americanas foram pela primeira vez para fábricas. O grande Norman Rockwell, que passou a vida a contar a América em desenhos nas capas dos jornais, publicou na The Saturday Evening Post, em 1943, uma operária na pausa do trabalho, sentada com uma rebitadeira pousada nas coxas e com os pés assentes sobre o Mein Kampf, o livro do Hitler. Na lancheira, o nome da dona, Rosie. Eis-nos apresentada não aquela mulher, mas um grupo a avançar: “Rosie, the Riveter”, Rosinha, a Rebitadora, juntando o nome doce e a profissão mais dura. Não rebitadeira destas agora, maneirinhas e de metal leve, mas das pesadas a exigir músculo.
“Rosie, the Riveter”, era o símbolo da mulher que deixara de ser fraca. Eram aquelas que diziam, olhando a América a direito: “Nós podemos fazê-lo!” Naomi Parker, a nonagenária que agora nos deixou, foi a que posou para a primeira imagem, mas logo eram milhões. Houve um filme, Rosie, the Riveter, uma balada popular, Rosie, the Riveter, representando factos que aconteciam todos os dias nas linhas de montagem. Numa fábrica de aviões, em Burbank, Califórnia, uma operária, de 18 anos, chamava-se Norma Jeane e ganhava 20 dólares por semana. Dez anos depois ganhava muito mais e já podia ir cantar de borla para os soldados americanos que combatiam na Coreia. Já era conhecida como Marilyn Monroe, uma “Rosie, the Riveter,” entre tantas.
Eis, pois, a primeira das duas imagens destes dias. Adeus Naomi Parker, ajudaste a fazer a transição entre as arrebicadas (ataviada, ornamentada, enfeitada, como cabia às mulheres), para as rebitadoras, capazes de fazer o que era preciso ser feito, tal como os homens. E eis a segunda imagem, tão lá atrás anunciada, que é de um homem perdido: Larry Nassar, 54 anos, veterano médico da equipa de ginástica feminina americana, ouvindo a sentença pelos abusos sexuais cometidos por ele a 160 ginastas, menores ou jovens mulheres. A juíza foi seca, disse-lhe: “Acabo de assinar a sua sentença de morte.” Condenou-o a 175 anos de cárcere, afastando o mau doutor da prática dos seus demónios.
Não é bonito olhar o olhar de Nassar. Faz mal. Fica como que uma sensação de que aquele pasmo não tinha entendido que muitos anos antes uma mulher pôs um lenço vermelho na cabeça, arregaçou as mangas e disse: “Eu.” Por estes dias, quem morreu foi Larry Nassar. E Naomi, essa, tão forte, tão anunciadora...