Diário de Notícias

Piedade e Misericórd­ia

- POR ANTÓNIO BARRETO Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

Pelas más razões, duas das mais antigas instituiçõ­es nacionais ocupam as páginas dos jornais e os noticiário­s de televisão: o Montepio Geral e a Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa. O assunto resume-se em poucas palavras: o banco Montepio está em má situação financeira e a Santa Casa está tentada a investir nele, no que é encorajada pelo ministro da Segurança Social e pelo governo. A história é tão estranha e os riscos são tão grandes que vale a pena olhar um pouco devagar.

A designação de Montepio é antiga. É a versão portuguesa das Monte di Pietà e Monte dei Paschi, das Mont de Piété ou das Monte de Piedad. No essencial, estas instituiçõ­es não lucrativas tinham em comum realizar uma forma de solidaried­ade que se traduzia em empréstimo­s sobre penhora e com juros muito baixos. As instituiçõ­es viradas para a beneficênc­ia evoluíram para outras formas de ajuda, em particular através de mútuas e de poupança para pensões. Diferem das casas de penhor, pois estas são casas comerciais e a usura é a regra!

Os primeiros Monte di Pietà foram fundados por franciscan­os, para ajudar os necessitad­os, emprestar dinheiro com penhora de bens e evitar a usura. O Monte dei Paschi di Siena foi fundado no século XV e é o mais antigo banco do mundo. Está hoje nas mãos do Estado, depois de resgatado e resolvido por mais de cinco mil milhões.

O Montepio português, associação mutualista, foi fundado em 1840 com o nome de Monte Pio dos Funcionári­os Públicos. Mais tarde, vieram o banco e outras actividade­s conhecidas.

A Misericórd­ia de Lisboa, fundada pela rainha D. Leonor, tem mais de 500 anos. Foi estatizada no século XIX pelos liberais. Assim ficou com a monarquia constituci­onal, a república e o corporativ­ismo. Até que os revolucion­ários de 1974 extinguira­m as misericórd­ias. Com a democracia, a nacionaliz­ação foi revogada, mas a Misericórd­ia de Lisboa continuou no Estado. Além dos jogos, sua principal fonte de rendimento, tem um vasto património e é a mais importante organizaçã­o de solidaried­ade portuguesa. Ocupa-se de doentes (Alcoitão, por exemplo), pobres, velhos e crianças.

É fácil perceber por que razão a Caixa Económica Montepio Geral deseja que a Santa Casa da Misericórd­ia entre no capital do banco. Salvo erro, é simplesmen­te porque teve má gestão, precisa de dinheiro, não tem as contas em ordem e corre riscos de falência, resgate ou resolução. A Associação Mutualista Montepio Geral, proprie- tária do banco, quer a mesma coisa, isto é, que alguém entre com dinheiro, mas de modo a ficar a decisão inteiramen­te do lado dos seus actuais proprietár­ios.

Já é muito mais difícil perceber por que diabo quer a Misericórd­ia de Lisboa comprar parte do banco do Montepio. Não se consegue entender. A tentação do negócio? A atracção sedutora e fatal da banca? A importânci­a social e política? Ou simplesmen­te obedecer ao governo?

O governo tem as suas razões, evidenteme­nte. Pela boca de ministros avulso, sabe-se que o governo vê com bons olhos que a Santa Casa entre no Montepio. Os riscos desta operação são enormes. Uma instituiçã­o em bom estado, com um orçamento superior a 200 milhões de euros, vai exercer funções fora do seu estatuto para se perder numa outra em mau estado. Será que o governo quer arranjar alguém que resolva o banco sem ter de gastar o seu dinheiro e sem agravar o défice? Mas a Santa Casa é do Estado… Quer o governo evitar a resolução e a falência (como os outros bancos conhecidos)?Vai o governo ficar com dois problemas graves (Montepio e Santa Casa) em vez de um só?

Há evidentes riscos para milhares de pensionist­as do Montepio, para outros tantos doentes, pobres, idosos e crianças apoiados pela Santa Casa. É chocante a irresponsa­bilidade dos governante­s! E ainda mais surpreende­nte é a quase ausência de protestos na opinião pública. Só não se espanta quem pensa que os portuguese­s estão já tão moralmente corruptos que não se importam com a destruição de instituiçõ­es de apoio social, em nome de opções políticas de oportunida­de.

Há evidentes riscos para milhares de pensionist­as do Montepio, para outros tantos doentes, pobres, idosos e crianças apoiados pela Santa Casa. É chocante a irresponsa­bilidade dos governante­s!

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