Como a política de Trump pode mudar a net para sempre
Fim da neutralidade da internet abre as portas a que os operadores tenham total controlo sobre o que vemos online
O cenário explica-se em duas frases: a empresa de telecomunicações. A limita (ou corta totalmente) o acesso dos seus clientes a certos serviços online (videoclube, e-mail...) que sejam propriedade da empresa B, sua concorrente. Para usar estes serviços, o cliente terá de pagar mais ou, em alternativa, mudar de operadora – arriscando que lhe aconteça o mesmo, agora com os papéis invertidos.
Em Portugal, tal como no resto da União Europeia, esta prática é ilegal. Nos Estados Unidos, no entanto, desde dezembro que (pelo menos em teoria) é possível concretizar um plano do género. É a consequência mais evidente do fim da “neutralidade da internet” decidida pela comissão federal de telecomunicações (FCC), no que foi mais uma revogação, pela administração Trump, de uma medida de Barack Obama.
A obrigatoriedade de os fornecedores de internet (ISP, na sigla inglesa) tratarem todos os dados que por eles passem, venham de quem vierem, de forma igual foi decretada em 2015. Mas para o novo presidente da FCC, Ajit Pai, a medida foi desnecessária por regulamentar “um problema inexistente”. O advogado, nomeado por Donald Trump, desde o primeiro minuto assumiu considerar aquela decisão errada, desincentivadora de investimento e “um bloqueio à inovação”, como veio a classificar no discurso, a 14 de dezembro, em que anunciou o fim da obrigação de os ISP garantirem tratamento igual para todos os conteúdos online.
Pai terá, no entanto, dificuldade em encontrar companhia para esta sua decisão. A grande maioria dos especialistas consideram a decisão má, há já 22 estados que meteram a FCC em tribunal para a reverter e, na quinta-feira, um dos membros do conselho de administração da agência, o mayor de San Jose, Sam Liccardo, demitiu-se do cargo em protesto.
“Com esta decisão da FCC passa a existir a possibilidade de limitar o acesso [a certos sites ou serviços], através, por exemplo, da aplicação de uma restrição na quantidade de acessos permitidos num determinado espaço de tempo, que fará que o site fique temporariamente indisponível ou demasiado lento para poder ser visualizado na íntegra”, explicam ao DN por e-mail os professores do IPCA – Instituto Politécnico do Cávado e do Ave Luís Ferreira e Nuno Lopes.
Luís Ferreira, doutorado em Engenharia Industrial e de Sistemas, é diretor do mestrado em Engenharia Informática na Escola Superior de Tecnologia (EST) daquela instituição. Nuno Lopes, doutorado em Engenharia Informática, é o responsável pela área disciplinar de redes de comunicações da EST do IPCA. E não têm dúvidas: o que está em causa neste debate é “determinar se o acesso à internet deve ser sempre livre, sem a possibilidade de distinguir acessos rápidos ou lentos para os seus utilizadores, versus a oferta de um serviço com vários níveis de qualidade, a preços distintos”.
“Uma consequência possível e realista é o impedimento ao livre acesso a sites. Com o fim da neutralidade, os operadores podem cobrar pelo serviço de acesso à internet mais rápido por oposição a um serviço equitativo, o que pode fazer que as entidades com menos recursos económicos não consigam competir por acessos rápidos em comparação com as grandes empresas que dispõem de mais recursos”, prosseguem os especialistas. “Tal vai restringir o acesso à internet rápida apenas a grandes grupos, e limitar a utilização da internet como uma ferramenta livre e equitativa para pequenas organizações. Empresas
startup baseadas em negócios online, que são caracterizadas por baixos recursos económicos no início da sua atividade, poderão não ter a capacidade de participar nesta nova internet rápida e, consequentemente, de verem o seu negócio online limitado”. A conclusão é inevitável: “A acontecer, será um passo atrás claro no rumo traçado para a adesão plena à economia digital.”
Na internet, “muito dos sucessos que se conhecem (Netflix, Spotify, Tumblr, etc.), estão diretamente relacionados com essa capacidade de poder chegar aos clientes, assente num principio equitativo, sem interferências discriminatórias dos provedores de banda larga. Terminar com a neutralidade significa simplesmente que passará a ser possível condicionar, de forma discriminatória, esta qualidade de serviço”. Que internet queremos ter? Neste debate, o que está também em causa é a forma como a sociedade, do ponto de vista político, económico e até ético, entende o que é a net. “Parte desta questão está relacionada com a atribuição do conceito de serviço de utilidade pública ao acesso à internet, impedindo os grandes grupos de obter maiores receitas por serviços que apenas estes podem oferecer”, afirmam Luís Ferreira e Nuno Lopes. E ainda que, na Europa, a legislação seja toda no sentido de assegurar a “neutralidade”, isto não garante em absoluto que um utilizador deste lado do Atlântico não venha a sofrer efeitos colaterais das decisões das tecnológicas dos Estados Unidos (ler texto ao lado). Afinal, estamos a falar de uma rede informática global, na qual os intervenientes numa sessão de navegação podem estar em qualquer parte do mundo – ou, será mais correto dizê-lo, estão espalhados por várias partes do mundo.
Todo o tráfego online se baseia em “três perfis essenciais: I) os clientes ou empresas, que usam ou criam serviços e aplicações sobre a internet; II) os provedores de servi-
O fim da neutralidade, a acontecer, será um passo atrás claro no rumo traçado para a adesão plena à economia digital Tal vai restringir o acesso à internet rápida apenas a grandes grupos e limitar a utilização da net como uma ferramenta livre