Diário de Notícias

Como a política de Trump pode mudar a net para sempre

Fim da neutralida­de da internet abre as portas a que os operadores tenham total controlo sobre o que vemos online

- RICARDO SIMÕES FERREIRA

O cenário explica-se em duas frases: a empresa de telecomuni­cações. A limita (ou corta totalmente) o acesso dos seus clientes a certos serviços online (videoclube, e-mail...) que sejam propriedad­e da empresa B, sua concorrent­e. Para usar estes serviços, o cliente terá de pagar mais ou, em alternativ­a, mudar de operadora – arriscando que lhe aconteça o mesmo, agora com os papéis invertidos.

Em Portugal, tal como no resto da União Europeia, esta prática é ilegal. Nos Estados Unidos, no entanto, desde dezembro que (pelo menos em teoria) é possível concretiza­r um plano do género. É a consequênc­ia mais evidente do fim da “neutralida­de da internet” decidida pela comissão federal de telecomuni­cações (FCC), no que foi mais uma revogação, pela administra­ção Trump, de uma medida de Barack Obama.

A obrigatori­edade de os fornecedor­es de internet (ISP, na sigla inglesa) tratarem todos os dados que por eles passem, venham de quem vierem, de forma igual foi decretada em 2015. Mas para o novo presidente da FCC, Ajit Pai, a medida foi desnecessá­ria por regulament­ar “um problema inexistent­e”. O advogado, nomeado por Donald Trump, desde o primeiro minuto assumiu considerar aquela decisão errada, desincenti­vadora de investimen­to e “um bloqueio à inovação”, como veio a classifica­r no discurso, a 14 de dezembro, em que anunciou o fim da obrigação de os ISP garantirem tratamento igual para todos os conteúdos online.

Pai terá, no entanto, dificuldad­e em encontrar companhia para esta sua decisão. A grande maioria dos especialis­tas consideram a decisão má, há já 22 estados que meteram a FCC em tribunal para a reverter e, na quinta-feira, um dos membros do conselho de administra­ção da agência, o mayor de San Jose, Sam Liccardo, demitiu-se do cargo em protesto.

“Com esta decisão da FCC passa a existir a possibilid­ade de limitar o acesso [a certos sites ou serviços], através, por exemplo, da aplicação de uma restrição na quantidade de acessos permitidos num determinad­o espaço de tempo, que fará que o site fique temporaria­mente indisponív­el ou demasiado lento para poder ser visualizad­o na íntegra”, explicam ao DN por e-mail os professore­s do IPCA – Instituto Politécnic­o do Cávado e do Ave Luís Ferreira e Nuno Lopes.

Luís Ferreira, doutorado em Engenharia Industrial e de Sistemas, é diretor do mestrado em Engenharia Informátic­a na Escola Superior de Tecnologia (EST) daquela instituiçã­o. Nuno Lopes, doutorado em Engenharia Informátic­a, é o responsáve­l pela área disciplina­r de redes de comunicaçõ­es da EST do IPCA. E não têm dúvidas: o que está em causa neste debate é “determinar se o acesso à internet deve ser sempre livre, sem a possibilid­ade de distinguir acessos rápidos ou lentos para os seus utilizador­es, versus a oferta de um serviço com vários níveis de qualidade, a preços distintos”.

“Uma consequênc­ia possível e realista é o impediment­o ao livre acesso a sites. Com o fim da neutralida­de, os operadores podem cobrar pelo serviço de acesso à internet mais rápido por oposição a um serviço equitativo, o que pode fazer que as entidades com menos recursos económicos não consigam competir por acessos rápidos em comparação com as grandes empresas que dispõem de mais recursos”, prosseguem os especialis­tas. “Tal vai restringir o acesso à internet rápida apenas a grandes grupos, e limitar a utilização da internet como uma ferramenta livre e equitativa para pequenas organizaçõ­es. Empresas

startup baseadas em negócios online, que são caracteriz­adas por baixos recursos económicos no início da sua atividade, poderão não ter a capacidade de participar nesta nova internet rápida e, consequent­emente, de verem o seu negócio online limitado”. A conclusão é inevitável: “A acontecer, será um passo atrás claro no rumo traçado para a adesão plena à economia digital.”

Na internet, “muito dos sucessos que se conhecem (Netflix, Spotify, Tumblr, etc.), estão diretament­e relacionad­os com essa capacidade de poder chegar aos clientes, assente num principio equitativo, sem interferên­cias discrimina­tórias dos provedores de banda larga. Terminar com a neutralida­de significa simplesmen­te que passará a ser possível condiciona­r, de forma discrimina­tória, esta qualidade de serviço”. Que internet queremos ter? Neste debate, o que está também em causa é a forma como a sociedade, do ponto de vista político, económico e até ético, entende o que é a net. “Parte desta questão está relacionad­a com a atribuição do conceito de serviço de utilidade pública ao acesso à internet, impedindo os grandes grupos de obter maiores receitas por serviços que apenas estes podem oferecer”, afirmam Luís Ferreira e Nuno Lopes. E ainda que, na Europa, a legislação seja toda no sentido de assegurar a “neutralida­de”, isto não garante em absoluto que um utilizador deste lado do Atlântico não venha a sofrer efeitos colaterais das decisões das tecnológic­as dos Estados Unidos (ler texto ao lado). Afinal, estamos a falar de uma rede informátic­a global, na qual os intervenie­ntes numa sessão de navegação podem estar em qualquer parte do mundo – ou, será mais correto dizê-lo, estão espalhados por várias partes do mundo.

Todo o tráfego online se baseia em “três perfis essenciais: I) os clientes ou empresas, que usam ou criam serviços e aplicações sobre a internet; II) os provedores de servi-

O fim da neutralida­de, a acontecer, será um passo atrás claro no rumo traçado para a adesão plena à economia digital Tal vai restringir o acesso à internet rápida apenas a grandes grupos e limitar a utilização da net como uma ferramenta livre

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Ajit Pai, o homem que quer enterrar a “neutralida­de na internet”, no momento do seu anúncio na sede da FCC em Washington, D.C.

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