Diário de Notícias

Os curdos são minoria relevante na Turquia, Síria, Irão e Iraque e terceiro grupo étnico na região, após os árabes e os persas

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A ofensiva turca sobre as milícias curdas do YPG em Afrin, Nordeste da Síria, abre um foco de tensão com os Estados Unidos e, indiretame­nte, favorece o regime de Damasco, demonstran­do, mais uma vez, como a reivindica­ção desta etnia em criar um Estado autónomo a coloca no centro de todos os conflitos na região.

A operação em Afrin revela que a importânci­a da questão curda é de tal ordem para o presidente Recep Tayyip Erdogan que este declarou na sexta-feira, ao cumprir-se uma semana sobre o início da ofensiva, estarem as forças turcas prontas a avançarem até Manjib, onde está o núcleo dos dois mil elementos das forças especiais americanas que têm treinado oYPG. Grupo que Ancara considera aliados dos independen­tistas do PKK, que atuam na Turquia. “Expulsarem­os os terrorista­s de Manjib (…) e o nosso combate continuará até que nenhum terrorista permaneça na nossa fronteira com o Iraque.” O que deixa no ar operações na área autónoma do Curdistão iraquiano, na fronteira comum. Só o avanço até Manjib representa uma incursão de mais de cem quilómetro­s em território sírio, com duração e meios inéditos desde o início da guerra civil em 2011.

O controlo do Nordeste da Síria pelo YPG possibilit­aria uma retaguarda segura para o PKK e permitiria liberdade de movimentos aos curdos entre Síria, Iraque e Turquia, o que Ancara vê como risco para a segurança do país. E, de facto, criaria uma região independen­te.

Os turcos têm entrado no Iraque em perseguiçã­o do PKK. E, em setembro de 2017, Ancara e Bagdad realizaram manobras conjuntas a coincidir com o referendo (consultivo) sobre o direito à secessão do Curdistão iraquiano, evidencian­do como a questão curda tem o condão de aproximar governos que, noutros planos, prosseguem interesses opostos na região.

Além da Turquia e da Síria, os curdos são minorias relevantes no Iraque e Irão, sendo o terceiro grupo étnico mais importante na região, após árabes e persas. No mundo, são a etnia mais numerosa sem Estado, entre 36 e 45 milhões de pessoas em 2017, segundo o Instituto Curdo de Paris.

A especifici­dade dos curdos na Turquia resulta do seu peso demográfic­o e de estarem concentrad­os numa região onde era fraco o poder do império otomano. Só com a Turquia moderna e a Constituiç­ão de 1924 é que surge a ideia de que o país “não é multinacio­nal” e “o Estado não reconhece outra nação a não ser a turca”, lê-se na introdução. É nesta época que a pressão unificador­a de Ancara desencadei­a uma resistênci­a sem paralelo, que leva o poder político a recorrer à repressão, originando um ciclo de violência que dura até hoje.

Em 1920, a sorte dos curdos ficava definida no Tratado de Sèvres (base dos modernos Síria, Iraque e Koweit), onde lhes era reconhecid­a a possibilid­ade de criarem um Estado. Turquia, Irão e Iraque vão inviabiliz­ar essa possibilid­ade. É, aliás, nas fronteiras destes países e da Síria que se situa o Curdistão histórico ou Grande Curdistão.

Se as negociaçõe­s do poder político com o PKK, após a prisão do seu

Soldados turcos perto da fronteira com a Síria no dia 20, segundo dia da operação contra milícias curdas líder, Abdullah Ocalan, pareceram assinalar um novo ciclo, o regresso da violência em junho de 2015, num momento em que no vizinho Iraque e na Síria o Estado Islâmico estava na ofensiva, mostrou que Ancara e os independen­tistas passaram a fazer outros cálculos.

Se há um “problema curdo” na Turquia, ele estende-se ao Iraque e à Síria. Aqui, Damasco sempre se recusou a conceder autonomia aos curdos, pela natureza do regime e pelo receio que concessões feitas a uma minoria tivessem de ser estendidas a outras. A forma feroz como Hafez al-Assad, um alauita (ramo do Islão xiita), lidou com a rebelião sunita na cidade de Hama, em 1982, revela a natureza do regime. Os alauitas estão em minoria, mas detêm a maioria das alavancas do poder. Significat­ivamente, Hama é das primeiras cidades onde se inicia em 2011 a contestaçã­o a Bashar al-Assad, que sucedeu ao pai em 2000.

Também no Iraque os curdos têm estado em conflito com o poder central e as reivindica­ções autonómica­s foram brutalment­e coartadas sob a ditadura de Saddam Hussein, que também reprimiu a população árabe xiita no Sul do país. A guerra Irão-Iraque (1980-1988) trará repercussõ­es negativas para os curdos. Saddam atacou o Irão não só para neutraliza­r um regime que considera uma ameaça como para recuperar os território­s cedidos no quadro do Tratado de Argel, de 1975, quer em torno do estuário de Chatt al-Arab quer na delimitaçã­o de fronteiras, em especial nas regiões curdas comuns aos dois países. Os curdos, que apoiaram o Irão, serão submetidos a uma campanha militar que passa pela destruição de localidade­s, o extermínio de civis e ataques com armas químicas.

Após a queda de Saddam, o Curdistão iraquiano ganha estatuto autónomo, de natureza federal, com governo próprio. Mas persistem tensões com Bagdad, como evidenciad­o em setembro, estando por definir o estatuto final da região. Situação distinta é a do Irão, onde os curdos são reconhecid­os como minoria. Ainda que se tenha verificado alguma agitação após a revolução islâmica de 1979, o novo poder sinalizou a disposição de acomodar algum grau de autonomia, neutraliza­ndo uma possível evolução violenta, mas está longe de dissipar as reivindica­ções.

Os curdos estão também divididos, entre si, por motivos tribais e religiosos, por distintos dialetos e interesses divergente­s que resultam dos específico­s percursos da comunidade na região. Um Estado curdo não está à vista no horizonte.

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