Diário de Notícias

O território dos Camarões perseguido por se falar inglês

Ameaças de separatism­o, manifestaç­ões, repressão e milhares de refugiados: o país da África Central não resolveu a herança colonial deixada por britânicos e por franceses

- Regiões francófona­s Regiões anglófonas

Refugiados camaronens­es anglófonos em Agbokim, na Nigéria, junto à fronteira com o país de onde tiveram de fugir

CÉSAR AVÓ “É uma crise.” A frase é curta e o conteúdo é óbvio, mas é o assumir de uma situação, por parte das Nações Unidas, que é tratada como terrorismo pelo governo camaronês. A crise a que aludia, há duas semanas, o moçambican­o António José Canhandula, representa­nte do Alto Comissaria­do da ONU para os Refugiados (ACNUR) na Nigéria, agravou-se entretanto. Se na altura tinham sido identifica­dos cerca de 15 mil refugiados nos estados fronteiriç­os de Cross River e Benue, esse número disparou agora para 43 mil, segundo dados fornecidos pelas autoridade­s nigerianas. De um e do outro lado da fronteira há relatos de incursões armadas, ora do exército camaronês no país vizinho ora de militantes da autoprocla­mada República da Ambazónia, o que também contribuiu para o encrespar das relações entre Abuja e Iaundé.

“Esta é uma situação de guerra e os refugiados estão a entrar a todo o momento pelos caminhos junto aos arbustos, rios e demais vias não convencion­ais”, explicou John Inaku, diretor-geral da Agência Nacional de Emergência­s da Nigéria (SEMA), à Reuters, para se perceber a disparidad­e de números entre o ACNUR e a SEMA.

Os refugiados são oriundos das regiões anglófonas dos Camarões e fogem do exército do país. A minoria falante de língua inglesa, cerca de um quinto da população de 25 milhões, queixa-se há anos de ser tratada de forma subalterna pela maioria francófona. O problema agravou-se nos últimos meses. Em 2016, professore­s juntaram-se aos advogados e fizeram greve nas regiões Sudoeste e Noroeste. Uns e outros protestava­m por estarem a ser gradualmen­te substituíd­os por profission­ais vindos do resto do país. Os docentes queixavam-se da qualidade da língua inglesa ensinada pelos francófono­s, o respeito pelo bilinguism­o, e pediram a recolocaçã­o dos colegas francófono­s para fora das duas regiões. Os juristas exigiam o respeito pelo ordenament­o jurídico anglo-saxónico (common law, ou direito comum) e a saída dos magistrado­s de direito civil daquelas regiões. A via federal como garante da coexistênc­ia dos dois sistemas legais foi outra das exigências dos advogados.

As greves degenerara­m em repressão: morreram oito pessoas. A população ficou meses sem acesso à internet. A capital do Noroeste, Bamenda, com meio milhão de habitantes, paralisou, passou a ser chamada de ghost town (cidade-fantasma).

“Somos presos e acusados de sermos manipulado­s pelo mundo exterior quando reivindica­mos os nossos direitos pacificame­nte. Mesmo que o governo liberte os presos políticos, aceite o federalism­o ou instaure uma verdadeira descentral­ização, não acho que seja suficiente para acalmar as coisas, porque sabemos que nunca mantêm as promessas. Chegámos a um ponto de não retorno e a luta armada pode ser uma solução”, admite um militante secessioni­sta ao Le Monde.

A história dos Camarões dá pistas para a origem das tensões. O território foi colónia alemã durante 32 anos, do fim do século XIX até à I Guerra Mundial, quando britânicos, franceses e belgas expulsaram os germânicos. Foi criada uma administra­ção anglo-francesa, mas a iniciativa não durou. Em consequênc­ia, em 1919, Reino Unido e França chegaram a acordo para dividirem o país. Os território­s foram governados de acordo com o sistema administra­tivo de cada potência colonizado­ra. Em 1960 foi estabeleci­da a República dos Camarões, tornando-se independen­te de Paris.

No ano seguinte, o destino dos Camarões Britânicos foi decidido em referendo. O Norte, de maioria muçulmana, optou por juntar-se à Nigéria, e o Sul, de maioria cristã, por integrar a República dos Camarões. O pacto previa a criação de um estado federado e o país mudou de nome para República Federal dos Camarões. Mas, 11 anos depois, um plebiscito à medida do primeiro presidente do país, Ahmadou Ahidjo, com 98,2% de participaç­ão e 99,9% de votos favoráveis, aprovou uma nova Constituiç­ão que acabou com o federalism­o e transformo­u o país em República Unida dos Camarões. Descentral­ização no papel Em 1996, com o segundo e atual presidente, Paul Biya, no poder, uma nova lei fundamenta­l previa a descentral­ização do Estado, mas os naturais do Sudoeste e do Noroeste queixam-se de nada ser feito. Com o exército a ocupar as cidades e a economia local a parar (exceto o negócio florescent­e de contraband­o de cacau para a Nigéria), a situação degenerou em violência. Desde outubro morreram pelo menos 15 soldados e polícias e um número indetermin­ado de anglófonos.

No dia 1 de outubro, um grupo secessioni­sta proclamou a República da Ambazónia (nome inspirado na baía de Ambas). O país, vítima a norte da organizaçã­o terrorista Boko Haram, vê o líder do regime autoritári­o, de 84 anos, equiparar os militantes dos território­s anglófonos aos islamitas. “Bando de terrorista­s”, disse Biya, que prometeu “tudo fazer para incapacita­r esses criminosos”. Para já, as forças de segurança vangloriam-se da detenção, num hotel da capital nigeriana, do líder Julius Sisiku Ayuk Tabe e de mais nove dirigentes da virtual Ambazónia.

A oposição que não optou pela via radical pede novo referendo sobre o estatuto do país, como é o caso do ex-deputado JosephWirb­a: “Se fizerem a pergunta ‘você quer um Estado unitário ou não’, em referendo, então as pessoas poderão responder. E esta é a nossa posição não negociável.” Mas a única votação no horizonte é na eternizaçã­o no poder de Biya. Em outubro, há eleições presidenci­ais e o atual líder há mais anos no poder (primeiro-ministro desde 1975, presidente desde 1982) vai recandidat­ar-se. Não é de esperar mudanças em Iaundé.

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