MP não está preparado para lidar com casos de violência doméstica
“Os funcionários do MP não têm formação nessa matéria, não lhes é dada por parte do Ministério da Justiça e não existe número de funcionários que permita um atendimento personalizado,
nem pelos funcionários nem pelos magistrados”, afirma o presidente do sindicato, que dá o exemplo de uma juíza que tem 700 processos a tramitar e todos são urgentes. No recente caso da mulher que morreu espancada pelo marido, assume que “foram
detetados problemas que devem ser corrigidos”.
A violência doméstica é um crime público desde 2000. No entanto, dados de 2012 a 2015 revelam que mais de 80% dos casos são arquivados. Segundo o próprio sindicato, a maior parte dos casos são arquivados porque a vítima desiste. Sendo certo que o crime público não está dependente de queixa por parte da vítima, como é que explica tão alta taxa de arquivamento? Há uma taxa alta de arquivamentos e também há uma alta taxa de absolvições em julgamento. Porque, muitas vezes, o depoimento neste tipo de crimes assenta muito no depoimento da vítima, e quem faz julgamentos frequentemente pressente logo que vai haver uma absolvição quando o arguido e a vítima entram de mãos dadas no julgamento. Quando vemos isso percebemos logo que vai haver uma absolvição. Existe uma prerrogativa legal, por exemplo, entre marido e mulher ou entre quem vive maritalmente de não prestar declarações, e essas pessoas muitas vezes não prestam declarações em audiência de julgamento, e o depoimento da vítima é verdadeiramente crucial para se fazer a prova dos factos. Se a vítima não pretender prestar declarações, não há prova que permita obter a condenação, o arguido também não as presta e, portanto, acontecem absolvições... Mas em muitos desses casos há inúmeras testemunhas, não é possível… Quando há inúmeras testemunhas são condenados, como é evidente. Há casos em que as testemunhas também não colaboram com a justiça? Não, regra geral, quando há absolvições, são casos em que não há testemunhas presenciais e que assentam essencialmente no depoimento da vítima conjugado com exames médicos. Os exames médicos, só por si, não fazem prova do que aconteceu, mas se forem conjugados com um depoimento credível da vítima podem permitir obter a convicção do julgador para levar a uma condenação. Quando esse depoimento desaparece, fica o exame médico sozinho sem mais nenhuns elementos de prova. Nesta semana, uma mulher morreu espancada pelo marido, mais de um mês depois de ter havido um primeiro alerta. O Ministério Público [MP] é, neste caso, acusado pela equipa que investiga os homicídios em violência doméstica de ter desvalorizado esta situação. O que é que acha que falhou aqui concretamente? Primeiramente, é necessário ler os relatórios, que foi o que fiz ontem com algum detalhe. Foram divulgados dois relatórios. Estes permitem uma conclusão muito simples: em muitos dos casos, os acontecimentos são imprevisíveis. No segundo relatório, que não tem sido tão noticiado quanto o primeiro, a GNR num primeiro momento faz uma análise do risco, que era médio. Numa fase posterior, o risco é baixo – tinha diminuído o potencial agressivo, as relações aparentemente estavam um pouco mais normalizadas e haveria menos risco – e depois aparece uma pessoa que é morta. A imprevisibilidade é um fator importante nestes casos. Às vezes, as relações parecem estar amenizadas, mas de repente há uma situação que espoleta um problema antigo e leva ao homicídio. É sempre assim, nestes casos de violência doméstica ninguém assume que há um risco de vida iminente. Não, mas às vezes há uma escalada que o MP deteta e são aplicadas muitas prisões preventivas. Aliás, quem faça uma análise dos últimos 20 anos da quantidade de prisões preventivas aplicadas ao crime de violência doméstica vê que, nos últimos anos, tem sido sempre a crescer. Cada vez se aplica mais prisão preventiva ao crime de violência doméstica, tem até uma frequência estatística já relevante. Essa situação ocorre normalmente numa escalada de violência, ou seja, há um primeiro conflito e depois vai-se agudizando, e quando se percebe isso, é aplicada a prisão preventiva com vista a parar o problema de vez. Neste caso específico, acha que o MP fez o que tinha de fazer? Neste caso, foram detetados alguns problemas que, na minha opinião, deviam ser corrigidos. Este relatório é importante por isso. A formação dos funcionários do MP que fazem o primeiro atendimento é uma questão premente. As forças policiais já têm agentes especializados na área da violência doméstica para conduzir o primeiro atendimento quando alguém se dirige, por exemplo, a uma esquadra ou a um posto da GNR, onde falam com a pessoa de modo a perceber os contornos da situação, para perceber se aquele caso foi simples ou foi num contexto mais complicado, de conflito. Muitas vezes a vítima relata o último facto, “o meu marido bateu-me”, mas depois, se houver uma conversa, pode-se desenrolar, [e perceber-se que] isto é um conflito que já está permanente e que a situação tem vindo a complicar-se… Isto dá logo um entendimento da situação muito mais abrangente. Falta gente especializada para esse atendimento? Falta. Os funcionários do MP não têm formação nessa matéria, não lhes é dada por parte do Ministério da Justiça e não existe número de funcionários que permita um atendimento personalizado, nem pelos funcionários nem pelos magistrados. Eu estive com uma magistrada num determinado tribunal que estava a tramitar 700 processos de violência doméstica, sendo todos eles urgentes. Tramitar personalizadamente 700 processos de violência doméstica ao mesmo tempo é impossível. Portanto, poderemos estar aqui a falar da lei, do MP, mas quem tem 700 processos para tramitar vai falhar em algum deles, é inevitável. Como vai falhar em qualquer profissão que tiver mais do que humanamente conseguir fazer.