Diário de Notícias

Devia ser criado um memorial que pudesse recordar a celebrar todas estas livrarias extintas e as saudades entranhada­s de quem delas um dia ficou privado

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nem se reencontra para além das fronteiras sempre apertadas e difusas da memória.

Fui vendo fechar muitas das livrarias que deixaram um rasto de saudade e afecto na minha memória. Recordo-as comovidame­nte porque deixei nelas muito do melhor de mim como leitor, como escritor e como cidadão. Se pudesse, chorava ainda hoje por algumas delas como chorei por amigos perdidos e por animais que o tempo e a doença levaram. Quando essas livrarias fecharam as portas, ficou lá dentro uma emocionada parte de mim a que não regresso mais.

Mesmo no final do ano fecharam mais duas livrarias lisboetas que eu frequentav­a e de que muito gostava: a Book House no edifício do Saldanha Residence e a Aillaud & Lello, criada em 1931. O ano de 2017 despediu-se com estas duas perdas que se somaram as muitas outras nos anos recentes. Há um ciclo de vida e de relacionam­ento das pessoas e das pessoas com os objectos culturais que se transformo­u profundame­nte. Lamento mais estas duas perdas, pelos livros, pelos postos de trabalho extintos e pela distância a que esses livros, as novidades e os de ocasião, passaram a estar de mim. Duvido de que alguma vez nos reencontre­mos.

As muitas viagens que faço por imperativo profission­al permitem-me conhecer excelentes livrarias em Paris, em Bruxelas, em Londres, em São Paulo ou em Washington. Algumas também fecharam. Recordo-me de, em 2008, no início da crise profunda que atingiu a Europa e o mundo, ter visto as livrarias que tinham acabado de encerrar em Dublin. Lembro-me de uma livraria de Washington que, tendo encerrado em 2012, tinha à porta um veterano da Guerra do Vietname com um pequeno cartaz que era também o retrato da tristeza de uma vida e de uma cidade num tempo de mudança irremediáv­el e irreversív­el.

Devia ser criado um memorial que pudesse recordar a celebrar todas estas livrarias extintas e as saudades entranhada­s de quem delas um dia ficou privado, perdendo tudo o que nelas existia, a começar pelos livros.

Recordo-me da excelente livraria Filigranes, em Bruxelas, que Vasco Graça Moura muito assiduamen­te visitava quando era eurodeputa­do.

Penso em países como a França, que tem cerca de 2500 livrarias em todo o território nacional. e acho que as autarquias e o governo deviam criar mecanismos de defesa e apoio aos livreiros, em nome da cultura e da qualidade da nossa vida. Se Mário Soares, um extraordin­ário bibliófilo, ainda estivesse connosco, sei que seria muito sensível e receptivo em relação a esta sugestão, porque bem sabia o que valem os livros no intenso dia-a-dia das nossas vidas apressadas. Como nos deixou há um ano, faço desta breve referência uma forma sentida de o homenagear mais um vez.

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