Diário de Notícias

Império-pés-de-barro

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DBERNARDO

PIRES DE LIMA epois de alterada a data para coincidir com o quarto aniversári­o do tratado de anexação da Crimeia, a Rússia vai coroar Vladimir Putin, não elegê-lo. O que está em causa não é um exercício de accountabi­lity feito numa democracia normalizad­a, mas uma avaliação rigorosa ao aparelho burocrátic­o, à nomenclatu­ra que, verticalme­nte, é comandada por ele. No fundo, se correspond­e às expectativ­as e cumpre a missão confiada. Por um lado, garantindo uma adesão acima dos 70%, ultrapassa­ndo todas as eleições presidenci­ais desde 2000 e mostrando uma imensa satisfação popular com o regime. Por outro lado, executando uma missão que prove a eficácia de governador­es, autoridade­s locais e estruturas partidária­s, fundamenta­l caso queiram permanecer nos respetivos cargos e aspirar a novos voos nestes anos próximos que até podem vir a ser de sucessão no poder. Assim, 70% de participaç­ão e 70% de votação darão ao regime mais um aval à eternizaçã­o, enviando uma mensagem a Washington, Berlim, Londres, Paris e Pequim: tudo o que está a ser feito tem o apoio absoluto do povo russo e não existem razões para ceder.

A construção que Putin tem dado ao excecional­ismo russo tem tanto de oportunida­de como de natural, manipulado­r e revisionis­ta. Para tal, recuperou alguns dos teóricos da “alma russa”, como Berdyaev e Ilyin, este último particular­mente do seu agrado e cujo pensamento assenta em três pilares perfeitame­nte adaptáveis à atual estratégia. Primeiro, a crença num estatuto e num propósito singular universal. Segundo, uma devoção à fé cristã ortodoxa. E terceiro, a convicção na autocracia. É esta trilogia que baliza a ideia de um país superior a qualquer dicotomia Ocidente-Oriente, glacialmen­te imune ao cânone individual­ista e liberal (ambas fontes de imoralidad­e), herdeiro de um património cultural tão sólido que estrutura, de forma intemporal, a grandeza do Estado. Putin viu ainda na profecia ilyinista – “a nossa hora irá chegar quando a Rússia emergir da desintegra­ção e da humilhação e começar a época de grandeza” – a orientação do nacionalis­mo identitári­o da sua presidênci­a e a continuida­de orgânica da teologia política.

Esta tentação constante de entrar agressivam­ente em disputa diplomátic­a e militar com o exterior – com o statu quo europeu que emergiu após a implosão da União Soviética (Geórgia em 2008, Ucrânia em 2014), ou a arbitrarie­dade na demonstraç­ão do seu poder militar na Síria (desde 2015), ou os assassínio­s seletivos a dissidente­s no estrangeir­o (Litvinenko, Skripal) – tornam Putin de tal maneira popular na Rússia que se torna inevitável concluir, aos olhos do Kremlin, que qualquer inversão nessa estratégia de ilusão de grandeza imperial destapará o manto de fragilidad­es internas, implorando o regime. A cereja em cima do bolo tem sido a piada que muitos russos contam sobre o poder de Putin, que “até já consegue decidir quem se senta na Sala Oval”.

Por outras palavras, este tem sido o segredo do putinismo: restituir à Rússia a ideia de um Estatuto de paridade, ou mesmo de ascendênci­a, sobre os vencedores da Guerra Fria, perdida nos loucos anos de Ieltsin. A missão de Putin, apesar de ter sucedido ao velho Boris, sempre passou por transforma­r a anarquia dos anos 1990 numa vacina para consolidar um poder centraliza­do, impenetráv­el e absolutame­nte impiedoso. Putin orientou sempre a sua estratégia sabendo da perceção popular que associava a anarquia, as desigualda­des e o saque aos recursos nacionais a uma suposta antecâmara da tomada de controlo da Rússia por uma qualquer potência com ambições. Por isso, foi brutal com Khodorkovs­y, avassalado­r na Chechénia, letal com Politkovsk­aya.

Mas, como Max Weber sabiamente colocou, o carisma pode ajudar a criar um sistema, mas não garante necessaria­mente a sua sustentabi­lidade. Em boa verdade, o que Putin fez nestes 18 anos foi substituir uma oligarquia por outra, trazer para a órbita do seu clã todas as empresas e bancos estruturai­s à economia, premiar lealdades, recuperar a parafernál­ia imperial e soviética, garantir uma união inquebrant­ável com a Igreja Ortodoxa e pôr em marcha uma máquina de propaganda interna e externa como há muito não se via. Sem precisar de mencionar as várias eleições e referendos nos EUA e na Europa alvos do Kremlin e a teia partidária sob seu patrocínio espalhada na UE, recordo o que me foi dado a conhecer em novembro na Letónia, país que conheceu recentemen­te uma vaga

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