Diário de Notícias

Saber como as pessoas pensam, querer saber o futuro, influenciá-lo, é o que sempre quisemos fazer e que tudo o que vai sendo inventado vai também servir para isso, habituemo-nos. Talvez agora comece a ser mesmo possível, tais são as doses de passado armaz

-

apropriada­s e pondo pontuação e pontos finais quando as frases deviam acabar. De resto não alterei nada.

Tem até um conteúdo narrativo clássico. Dois amigos conversam, falam, talvez ao telefone. A amizade é tensa. Há uma mulher em perigo, e tem de ser salva. Tem de se fazer tudo, não pode haver desculpas, está a ser injustiçad­a. É preciso dar tudo, tudo por ela, é a minha preferida do mundo, diz ele. Está ali o meu e-mail, se for preciso alguma coisa. Há um ele, um outro ele, um dos maiores nomes do mundo, mas que não a salva, que a ignora, que a menospreza. Ele, o ele sujeito, fala ao tal amigo, quer resolver, quer salvar. Um drama clássico: propósito e obstáculo. Não se sabe qual é o problema dela. Vou escrever “o problema dela é”. Veio a resposta: “O problema dela é que o governo do Estado de São Paulo de ser uma coisa que não há nada de novo.” Não ajudou muito, mas sabemos que não haver nada de novo é o mais velho problema delas. No estado de São Paulo? Talvez reminiscên­cias da minha ida lá em setembro. Será que é o iPhone a querer dizer-me qualquer coisa, qualquer coisa que já nem eu me lembre? Maldita predição.

Mudando de assunto, sem mudar bem de assunto, a coisa está muito interessan­te para os lados de Londres e da América e também tem a ver com tecnologia, informação, predição. Predição em cima das fake news e dos ataques russos, há agora a notícias sobre a empresa Cambridge Analytica, que presta serviços de consultori­a eleitoral baseada numa análise do perfil psicológic­o dos eleitores, usando esse perfil para lhes dirigir massivas campanhas de publicidad­e eleitoral personaliz­ada, tentando ir mudando os comportame­ntos, reforçando os estereótip­os, confirmand­o os preconceit­os. O fenómeno em si não é novo, já se sabia que tinham sido contratado­s pela campanha de Trump e que tinham atuado na campanha do brexit, depois de generosame­nte financiado­s por dinheiro ligado à agenda conservado­ra, com Robert Mercer à cabeça.

Mas o que se veio agora a descobrir, conta o The New York Times, foi o facto de como ponto de partida terem utilizado informação respeitant­e a cinquenta milhões de utilizador­es de Facebook, informação que foi roubada, ou pelo menos usada sem o consentime­nto devido. O Facebook suspendeu a conta da empresa, mas não deixará de ser afetado pelo escândalo de proporções que ainda agora se começa a perceber. A Cambridge Analytica continua a defender que muitos dos perfis usados na campanha de Trump tinham sido recolhidos de forma legal durante a campanha de Ted Cruz, mas a batalha judicial vai ser longa.

Saber como as pessoas pensam, querer saber o futuro, influenciá-lo, é o que sempre quisemos fazer e que tudo o que vai sendo inventado vai também servir para isso, habituemo-nos. Talvez agora comece a ser mesmo possível, tais são as doses de passado armazenado. Mas eu, o que eu gostava era de conhecer melhor o passado. Andava à procura do texto do Umberto Eco sobre como viajar com um salmão, para usar como analogia numa conferênci­a que estive a moderar, e dei com ele, na Paris Review, mas também com o facto, que não sabia, de que a Paris Review foi criada por um agente da CIA e servia as operações da agência usando e abusando de intelectua­is, escritores um pouco por todo o mundo (García Márquez, Hemingway). O dano talvez fosse idêntico. Mas era um mundo bem mais civilizado.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal