Diário de Notícias

Aparição: Vergílio Ferreira com sombra de pecado

Cinema. Transposiç­ão feliz da obra de Vergílio Ferreira, Aparição marca o regresso de Fernando Vendrell à realização. Com Jaime Freitas, Victoria Guerra e Rui Morisson no elenco

- RUI PEDRO TENDINHA

Uma obra seminal da literatura portuguesa finalmente transposta para o cinema. Voltamos a ter Vergílio Ferreira no grande ecrã. A responsabi­lidade é de Fernando Vendrell, cineasta de Fintar o Destino, um dos segredos do cinema português dos anos 1990, que pôs fim a um hiato de cerca de uma década como realizador.

Uma adaptação que parece uma instalação gótica mas que é ao mesmo tempo de uma vitalidade prática em conseguir fruir os diálogos abstratos da obra em dispositiv­o narrativo. Totalmente situado em Évora em 1950, Aparição é a história de um jovem professor de liceu que chega a Évora para dar aulas mas também para continuar a sua carreira como escritor. Alberto Soares (Jaime Freitas) é um jovem cheio de preocupaçõ­es existencia­listas num Portugal salazarent­o e opressor. Deixa-se seduzir por Sofia (Victoria Guerra), uma das três filhas de um médico amigo, mas cedo o romance desliza para um jogo romântico fatalista. Alberto observa o mundo com uma amargura que se vai confundir com um esboço de uma tragédia anunciada, em especial através da sua relação com um jovem aluno que também se apaixona por Sofia.

Além do peso gótico, o argumento de Fátima Ribeiro e João Milagre é de uma carga negra muito expressa, capaz de uma imateriali­dade existencia­lista vincada e explícita. Aparição está inundado de uma tristeza que parece cortês, quase em jeito de clássico pesadelo português. Nesse sentido, é um filme que nos oprime – sentimos aquela clausura da pequena cidade portuguesa imersa na letargia da ditadura. Noutro sentido, resulta ainda como uma funesta tese de morte. O melhor elogio que se pode fazer é que mesmo entre todas as suas fragilidad­es nunca deixa de nos empurrar e raptar para dentro da literatura. O espírito de Vergílio Ferreira está lá todo.

“A adaptação foi muito aliciante, Aparição é uma obra de transição na carreira de Vergílio Ferreira e foi fundadora do seu futuro percurso literário. A passagem do neorrealis­mo para o existencia­lismo, o abandono de um contexto coletivo de empenho político e social e a aquisição de uma escrita com um teor filosófico, individual e literariam­ente rigorosa. Escrito durante a sua vivência em Évora,Vergílio Ferreira condensou aspetos biográfico­s no texto e utilizou alguns mecanismos de transposiç­ão do real para a produção desta obra ficcional. O facto de ter localizado a filmagem integralme­nte em Évora foi determinan­te para as futuras opções de realização que tomei”, conta-nos o realizador. Depois de Vendrell se ter consagrado essencialm­ente à produção (quer em cinema quer em televisão), este foi um regresso também com uma carga de missão: combater uma espécie de ocultação em torno da obra deVergílio Ferreira. Isso e reagir a um mau olhado nos concursos de financiame­nto do Estado: “Foram dez anos de sucessivas batalhas perdidas, um período pessoal conturbado e até institucio­nalmente traumático. No futuro não quero parar de realizar, não vou permitir que me prejudique­m da mesma forma, tudo farei para impedir uma ausência tão longa novamente.”

O espectador de Aparição pode ter também uma sensação de abandono. O filme tem diversas correntes. Às vezes, parece que nos foge para termos de o apanhar. Mas o que é tocante é que há qualquer coisa de insondável: somos mesmo puxados para aquele desespero. Depois, há também um trabalho muito rigoroso com a respiração da língua portuguesa, algo muitíssimo bem trabalhado na encenação dos diálogos. Talvez por isso o filme terá passado ao lado das escolhas dos programado­res de alguns festivais internacio­nais.

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Jaime Freitas e Victoria Guerra em Aparição, de Fernando Vendrell

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