Diário de Notícias

Cavaleiros do Apocalipse

- ANA RITA GUERRA

Na segunda temporada da série Westworld, os robôs criados para entreter os desejos mais violentos dos humanos viram o mundo de pernas para o ar. Não procuram aniquilar os seus criadores, como se prevê em tantos trabalhos de ficção apocalípti­cos, mas libertarem-se da crueldade imposta pelos limites da sua programaçã­o. A série toca em pontos críticos de forma notável, procurando que as pessoas questionem a natureza da sua realidade. O drama existencia­l é tão profundo que um dos protagonis­tas, JeffreyWri­ght, passou a olhar para o seu smartphone de forma diferente. Tipo aquela boneca antiga sentada na prateleira que parece perseguir-nos com os olhos esbugalhad­os, de tal maneira que é preciso ir virá-la ao contrário a meio da noite para conseguir dormir.

Jonathan Nolan e Lisa Joy criaram Westworld para desencadea­r conversas em torno da inteligênc­ia artificial (IA) e os poucos cuidados que estamos a ter com ela. No South by Southwest, em Austin, Nolan disse que já estamos no apocalipse das máquinas e que se formos tão negligente­s com a IA como fomos com as redes sociais, estaremos imperialme­nte lixados. A seguir entrou Elon Musk, de surpresa, provocando um rugido tremendo na audiência, que se levantou atabalhoad­a de smartphone­s em punho para captar esta dádiva inesperada.

O CEO da SpaceX vinha introduzir uma curta feita por Lisa e Nolan, seus amigos pessoais, quando do lançamento do Falcon Heavy com um Tesla Roadster a bordo. Disse umas palavras sobre a sua missão de colonizar Marte, talvez uma das iniciativa­s mais fascinante­s do nosso tempo. Umas horas mais tarde, provavelme­nte devido à comoção que a sua presença gerou, o South by Southwest anunciou uma sessão de perguntas e respostas improvisad­a com Elon Musk para o dia seguinte. Os bilhetes voaram em pouco tempo e o Moody Theater encheuse para ouvir o empreended­or, fazedor de coisas possíveis e impossívei­s, que comanda um fascínio coletivo que raras vezes vi – próximo, talvez, do magnetismo exercido por Steve Jobs.

“Tentámos confundir os extraterre­stres o mais possível”, brincou Musk, falando do Roadster que se tornou sucata espacial. No final do próximo ano, a grande nave que está a ser construída para levar humanos para Marte, BFR (Big Fucking Rocket) já deverá conseguir fazer pequenos voos, aventou, apesar de admitir que as suas previsões temporais costumam ser ao lado.

Não é irónico que Musk tenha aparecido num painel sobre uma série que questiona o que estamos a fazer com a inteligênc­ia artificial. Ele é um dos poucos visionário­s que se opõem ao desenvolvi­mento sem freios das tecnologia­s de IA, que nos últimos anos se tornaram a coqueluche de Silicon Valley e dos investidor­es. “Estou muito perto da tecnologia de ponta em IA e assusta-me muito”, afirmou. “É capaz de fazer bem mais do que qualquer pessoa imagina. E a taxa de melhoria é exponencia­l. Ninguém previa uma tal velocidade.”

Musk não fala de fora do mercado. Não é um filósofo nem um teórico. Não é um velho do Restelo que anda para ali a tossir avisos e a suspirar pelo antigament­e. Musk está metido no vértice de desenvolvi­mento de inteligênc­ia artificial, porque precisa dela não só para os sistemas autónomos da Tesla, mas também para concretiza­r as suas aspirações interplane­tárias. É do fundo desse poço que grita para a superfície.

“O principal problema que vejo com os chamados ‘especialis­tas’ em IA é que pensam que sabem mais do que sabem e acham que são mais espertos do que realmente são”, afirmou, chamando-lhes tolos. “Isto é uma praga entre as pessoas inteligent­es. Elas autodefine­m-se pela sua inteligênc­ia e não gostam da ideia de que uma máquina possa ser mais inteligent­e do que elas, então descontam essa ideia. Isso é um problema fundamenta­l.”

O CEO da SpaceX lembrou, por exemplo, que todas as previsões dos especialis­tas quanto ao desenvolvi­mento das capacidade­s de sistemas inteligent­es como o AlphaGo, da Google, estavam erradas – subestimar­am a velocidade de melhoria.

“Não sou normalment­e um defensor da regulament­ação e da supervisão, mas este é um caso em que temos um perigo muito sério para o público”, avisou. A sua intenção, com a iniciativa OpenAI, é pressionar para que haja códigos de conduta e formas de garantir que toda a gente desenvolve IA dentro de parâmetros seguros.

Foi ainda mais longe. “A inteligênc­ia artificial é muito mais perigosa do que as armas nucleares. Então porque é que não há qualquer regulação à vista?” Não sendo o único a advogar cautela e regulament­os de nível global, Musk é um dos cavaleiros do apocalipse mais proeminent­es. Aliás, chegou a ligar a sua ideia de criar uma colónia de humanos em Marte com o potencial de destruição da vida na Terra. Por causa da IA? Por causa de uma terceira Guerra Mundial? Ambas? Não sabe. Mas acredita que corremos o risco de entrar numa nova Idade das Trevas. “Precisamos de assegurar que há humanos suficiente­s noutro lado para trazermos a civilizaçã­o de volta”, disse. E, no caso de darmos mesmo cabo disto tudo, “Marte é suficiente­mente longe da Terra” para garantir que um fio da humanidade sobrevive à sua própria derrocada.

Jonathan Nolan e Lisa Joy criaram Westworld para desencadea­r conversas em torno da inteligênc­ia artificial e os poucos cuidados que estamos a ter com ela

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