Diário de Notícias

“FRANÇA E PORTUGAL SÃO AS DUAS DEMOCRACIA­S COM MAIOR QUALIDADE DA EUROPA DO SUL”

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

A entrevista a Tiago Fernandes, organizado­r do livro Variedades de Democracia na Europa do Sul 1968-2016, decorre nas instalaçõe­s do IPRI – Instituto Português de Relações Internacio­nais e culmina num elogio à qualidade da democracia portuguesa. O livro, editado pela Imprensa de Ciências Sociais e apoiado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, é hoje apresentad­o às 16.45 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universida­de Nova de Lisboa. Haverá ainda um debate com especialis­tas nacionais e estrangeir­os. Extrema-esquerda a governar a Grécia, um movimento populista a ganhar as eleições italianas, um partido vindo do nada e baseado num homem a ganhar em França, quatro partidos a disputarem o poder em Espanha quase em igualdade e uma coligação de esquerda a governar Portugal. Isto há dez anos seria um cenário inimagináv­el? Sim. Nasce do período da chamada grande recessão e da grande crise europeia, com o drama dos refugiados e um período de maior terrorismo, sobretudo em França, mas digamos que os últimos dez anos têm sido de grande transforma­ção dos sistemas políticos, em particular dos sistemas partidário­s, alterando não só a sua composição organizaci­onal – apareceram novos partidos e movimentos e velhos partidos fundadores do sistema democrátic­o desaparece­ram – mesmo nos casos em que o sistema se mantém mais ou menos igual, como Portugal, há uma reorientaç­ão estratégic­a em termos de coligações predominan­tes e de orientação ideológica. Portugal é um dos poucos casos em que o tradiciona­l grande partido de esquerda continua a ser um grande partido e até é governo. Nos outros países da Europa do Sul ou o grande partido de esquerda tradiciona­l está em crise, como na França, ou está ameaçado por concorrent­es da esquerda, como é o caso na Espanha. A crise do chamado grande centro afeta mais a esquerda porquê? Penso que há várias razões que têm que ver com explicaçõe­s de longa duração. Ou seja, o período fundador destas democracia­s – dos anos 1960 a 70, desde o Maio de 68, passando pela Revolução em Portugal de 1974 – é de grande mobilizaçã­o da sociedade civil e de protesto, onde emerge todo um conjunto de novas questões que são colocadas na arena pública, como por exemplo a gestão local das cidades ou a autonomia dos trabalhado­res face aos sindicatos nas fábricas, os movimentos de moradores, os movimentos de mulheres, etc. E os partidos de esquerda tiveram, nessa altura, um grande desafio. E na longa duração a forma como a esquerda neste período fundador se estabelece­u e se consolidou na sociedade determina a sua força futura na maneira como reage à grande recessão. O que é importante durante o período da grande recessão é que a crise da esquerda é maior em termos organizaci­onais de perda de peso eleitoral e perda face aos seus competidor­es externos, como o PSOE face ao Podemos, etc., na medida em que os partidos do centro-esquerda são partidos que durante as décadas anteriores se colocaram mais à direita e adotaram gradualmen­te mais ideias do liberalism­o económico, e depois o neoliberal­ismo. O PASOK na Grécia, que é o primeiro dos grandes a quase desaparece­r, pagou por ir demasiado para a direita? Sim, e não apenas o PASOK, por terem adotado políticas monetarist­as, terem cortado a ligação com o movimento sindical e terem pactuado com a governação de governos de direita. Por exemplo, a introdução dos limites ao défice público na legislação espanhola… ou então são partidos que na sua fundação têm um tipo de mobilizaçã­o eleitoral muito baseada em trocas tipo clientelar, não só das suas bases e da população comum, pois a maneira como gerem e implementa­m as políticas públicas é muito particular­ista. Mostramos isso no livro, que há um tipo de políticas públicas muito orientada para ganhar votos, ou políticas sociais destinadas a grupo específico­s que depois têm ali um quinhão eleitoral que lhes dá poder de eleição para eleição, em vez de serem políticas desenhadas como um todo para a sociedade. Depois na longa duração isso faz que sejam partidos mais fracos porque as suas bases organizaci­onais aguentam menos o impacto das crises externas. E em circunstân­cias de extremo desemprego depois não têm uma ideologia alternativ­a a oferecer. Vemos aí a explicação do que aconteceu na Grécia… E na Itália também. Em Espanha parcialmen­te e em Portugal menos. Percebe alguma exceção na lógica portuguesa? Portugal tem um momento fundador da democracia que é único, que é o facto de ser uma revolução. De uma maneira geral a cultura das elites políticas portuguesa­s como um todo, mas em particular no PS, mesmo durante os períodos em que o PS governou isoladamen­te, é mais à esquerda do que os seus congéneres europeus. Tento mostrar isso no livro com o argumento de que o PS nos momentos fundadores tem uma orientação progressis­ta em que tende muito facilmente a reconhecer como legítimas as vozes daqueles que fazem protesto na rua, dos que são excluídos do sistema, dos grupos populares e do movimento sindical. Dentro do PS houve sempre uma coligação relativame­nte forte adepta de acordos com a esquerda, que foi determinan­te em alguns contextos (Jorge Sampaio, na Câmara de Lisboa, e António Costa vem desse caldo de cultura política). Mas mesmo figuras que estiveram mais à direita em certos contextos políticos, por exemplo as coligações dos governos do bloco central do PS ou a luta contra o Partido Comunista no período final da Revolução, como Mário Soares – é ele próprio que depois também tem períodos de extremo-esquerdism­o na sua carreira, como durante a sua presidênci­a em que procura federar a esquerda e, aliás, bem antes, num dos períodos fundamenta­is da sua carreira política, que é o final do período do Estado Novo, em que ele é, nos países da Europa do Sul, o único político que é partidário de um programa comum das esquerdas inspirado no modelo de François Mitterrand em França. Penso que tem que ver com a experiênci­a do exílio em França. E isso passou para a cultura organizaci­onal do PS português. O PS português vive de facto um momento único durante a liderança de António José Seguro, em que há quase uma revolta das elites contra ele porque ele estava na iminência de fazer um acordo com a direita. De certa maneira, salva o partido porque fá-lo marcar uma diferença de que é um partido claramente antiauster­idade. E a sobrevivên­cia tem que ver com isso. No caso de Itália, que teve durante décadas o partido comunista mais forte da Europa Ocidental, como explica a crise profunda da esquerda? A crise não é só da esquerda italiana, é a crise do sistema partidário como um todo, desde o início dos anos 1990. No pós-Guerra Fria há um colapso do sistema partidário italiano sob o impacto dos escândalos de corrupção e cresce para ocupar o vazio um movimento que tem caracterís­ticas populistas e até antidemocr­áticas, com Silvio Berlusconi… um discurso antipartid­os. E depois há um ciclo contínuo em que a direita é cada vez mais extremista e populista, surgindo mais recentemen­te o Movimento 5 Estrelas, que consegue fazer Berlusconi parecer uma figura quase respeitáve­l. Define o 5 Estrelas como de direita? Sim. Tal como todos os partidos populistas, cuja orientação principal é conquistar o poder a todo o custo, vão enfatizand­o vários movimentos… tal como o fascismo que foi fundado por indivíduos vindos da esquerda. Eles enfatizam aspetos que são importante­s para a esquerda, como a segurança socioeconó­mica e a proteção face aos mercados e a manutenção do Estado social, mas com um discurso chauvinist­a apenas para os nacionais e contra os estrangeir­os. Mas depois tem um discurso de direita no sentido em que são ultranacio­nalistas, podem ser anti-UE e nesse ponto de vista a paisagem política italiana é uma desagregaç­ão contínua desde a década de 1990. As leituras de longa duração disto têm que ver com partidos que se estabelece­ram nas décadas de 1950, 60, no caso italiano no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, cuja relação com o eleitorado era baseada no sistema de troca e não na mobilizaçã­o ideológica. Aqui há uma diferença grande na Europa do Sul entre a Grécia e a Itália, por um lado, e Portugal e França, por outro. São os casos extremos. Enquanto Grécia e Itália têm este tipo de mobilizaçã­o política desde os anos 1960, que faz que os partidos sejam mais fracos organizaci­onalmente e mais sensíveis a choques externos como es-

cândalos de corrupção, quando todo o sistema é baseado em trocas clientelar­es e há uma utilização do Estado para esse efeito, quando a opinião pública começa a tomar consciênci­a disso, o sistema vem abaixo e o espaço político é ocupado por movimentos novos e cuja ligação à democracia é muito ténue. Nos casos português e francês isso acontece menos porque os partidos tendem a ter uma mobilizaçã­o ideológica muito mais clara. O caso francês é o único em que emerge uma força política que parece vir do centro. Emmanuel Macron em vez de puxar por um dos extremos tenta fazer a síntese da esquerda e da direita. Porque é que há este excecional­ismo francês? O caso Macron não é assim tão singular como isso porque a história contemporâ­nea da França, desde o pós guerra, está recheada de exemplos de novos movimentos políticos, desde o gaullismo, de reemergênc­ia de movimentos políticos da esquerda e da direita… a França é caracteriz­ada pela reemergênc­ia política. Há aqui a procura de um homem forte, seja Charles de Gaulle seja Macron? Tem que ver com o sistema presidenci­alista francês. Há uma tradição desde Napoleão de um homem forte que lidera e que faz grandes grandes movimentos de ligação… é uma fórmula moderna. No caso de Macron há uma continuida­de organizaci­onal no tipo de grandes frentes que se estabelece­m para mobilizar o eleitorado mas há uma continuida­de das elites políticas também. Essa fluidez do sistema partidário francês é interessan­te porque há fortes elementos de continuida­de. Para dar um exemplo: os níveis de volatilida­de eleitoral entre esquerda e direita em França são relativame­nte estáveis. Apesar de os movimentos e os partidos se renovarem as identidade­s dos eleitorado­s são mais ou menos estáveis entre esquerda e direita – que é uma garantia de estabilida­de do sistema. E em Portugal também, as identidade­s eleitorais dos cidadãos são mais ou menos regulares de eleição para eleição. Quem vota na esquerda tende a fazê-lo mais consecutiv­amente e o mesmo na direita. Pelo contrário, em Espanha, Grécia e Itália a volatilida­de eleitoral é muito maior. São sistemas muito mais imprevisív­eis, portanto os partidos que não têm uma relação identitári­a com o eleitorado perdem mais facilmente para novos competidor­es. Do que estudou, no fundo são estes últimos 50 anos de história política, sente alguns riscos para a democracia em algum destes cinco países europeus? Sinto. Em Espanha, por exemplo. Há claras limitações às liberdades cívicas, com a lei mordaça, a liberdade de associação e expressão, etc. Também na Grécia, onde durante a crise houve atentados contra a liberdade de expressão, bullying contra jornalista­s. O caso de Itália é muito evidente, com a interferên­cia do poder político no sistema mediático, na pressão sobre os jornalista­s, há menor pluralismo informativ­o, digamos, polarizado publicamen­te, e há também uma tentativa de condiciona­r o poder judicial. Desse ponto de vista há uma maior interferên­cia dos executivos em duas instituiçõ­es fundamenta­is para a democracia: a liberdade dos

media, o pluralismo e o sistema judicial. Itália tem muito disso e penso que se vai acentuar neste contexto. No caso grego também e no caso espanhol há maior limitação das liberdades cívicas… se noutras épocas quando se lutava pela democratiz­ação era pelo sufrágio universal hoje já não é assim sempre. Os potenciais autoritári­os, que frequentem­ente chegam ao poder ganhando eleições, tendem depois a minar o sistema e mantendo o sufrágio universal limitam todo um conjunto de outras arenas da democracia como a capacidade de os tribunais controlare­m o poder político, a liberdade mediática e limitações à liberdade de expressão, de associação e de manifestaç­ão. E temos a legislação espanhola sobre as multas que colocam os manifestan­tes em risco de prisão. Há uma lista de pessoas considerad­as potenciais inimigos públicos. Tudo o que está a passar-se na Catalunha também… gerou-se ali um movimento ultranacio­nalista que tem elementos de populismo mas que é reação de certa maneira à intransigê­ncia ao Estado central espanhol em reconhecer autonomia àquela região e a maneira como tentaram resolver isso foi através da limitação das liberdades cívicas. Vê diferenças claras entre as democracia­s da Europa do Sul e da do Norte? O que fazemos no livro é uma comparação dentro das democracia­s da Europa do Sul e é mais interessan­te do que compará-las com a Europa do Norte. A Europa do Sul tem um conjunto de caracterís­ticas únicas que tornam os países comparávei­s entre si: a existência de um passado autoritári­o (menos em França), ao contrário das democracia­s da Europa do Norte, que não tiveram longos períodos de autoritari­smo de direita e isso deixa um legado nestas sociedades que não é impeditivo que se democratiz­em, mas o potencial impacto na qualidade da democracia será menor porque o período de vigência do autoritari­smo foi muito grande e deixa estruturas sociais e políticas frequentem­ente inimigas da consolidaç­ão democrátic­a ou de uma democracia de baixa qualidade. Para dar um exemplo: a desconfian­ça face à política tende a ser maior naquelas sociedades que têm um período de grande autoritari­smo na sua história, porque a relação natural dos cidadãos com a política é naturalmen­te de desconfian­ça. E também às vezes algum desejo por soluções de homens fortes. Mas, por outro lado, aquilo que é interessan­te verificar é que apesar desta tradição de autoritari­smo, e também de desigualda­de – Portugal é o caso extremo –, há diferenças muito grandes. Portugal e França emergem como as democracia­s de maior qualidade. Portugal é frequentem­ente apresentad­o no debate público como uma democracia de má qualidade, mas em termos comparativ­os está à frente até de sociedades que do ponto de vista socioeconó­mico estão à frente de nós.

“Dentro do PS houve sempre uma coligação relativame­nte forte adepta de acordos com a esquerda, que foi determinan­te em alguns contextos” “No pós-Guerra Fria há um colapso do sistema partidário italiano sob o impacto dos escândalos de corrupção e cresce para ocupar o vazio um movimento que tem caracterís­ticas populistas e até antidemocr­áticas” “A desconfian­ça face à política tende a ser maior naquelas sociedades que têm um período de grande autoritari­smo na sua história, porque a relação natural dos cidadãos com a política é de desconfian­ça. E também às vezes algum desejo por soluções de homens fortes”

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