DINAMARQUÊS RECOLHE SONS DO RIO E DA PONTE PARA FAZER MÚSICA
Música. O dinamarquês, vocalista dos Liima, está a trabalhar num projeto a solo. Nesta semana faz uma pausa e apresenta-se amanhã com a banda: os sons de 1982 vão escutar-se na ZDB
“Room with a view!” escrito com discrição a esferográfica no tampo da mesa posta de frente para a janela rasgada parede a parede sobre o Tejo, a ponte, Lisboa – uma perfeita redundância. No Olho de Boi, em Cacilhas, o dinamarquês Casper Clausen ocupa um pequeno gabinete da Sociedade Portuguesa de Pescas e deixa-se contaminar. Junta aos sons do Norte, que traz com ele, o rio, a luz, a ponte, o céu azul, as conversas dos pescadores no pontão. Tem 36 anos. Passou os últimos dez meses por ali, sozinho, com algumas intermitências. Terminou no fim de semana uma digressão pelo Norte da Europa com os Liima, banda de que é vocalista. Está de regresso e traz a banda: amanhã apresentam o disco 1982 na ZDB, outro lado do rio.
Parece confuso, mas Casper Clausen vai tentando arrumar as coisas: “O que eu faço neste estúdio é a minha música. Nunca fiz música a solo antes e, quando me mudei para Lisboa, estava curioso de encontrar um projeto que fosse diferente de tudo o que fiz até hoje. Estava a crescer em mim este desejo de me expressar depois de estar em bandas durante 20 anos, por isso, nos intervalos das digressões e de fazer discos com os Liima e os Efterklang, estou aqui a fazer as minhas coisas”, conta.
A conversa segue num desses intervalos. Casper tem à frente os instrumentos de trabalho (com exceção do computador): dois microfones, um sintetizador, o baixo, percussão, o leitor de CD (por vezes usa para tirar sons de outros discos e manipulá-los). Admite que a música que está a fazer possa ter algo de Portugal, mas não fala de fado, cante nem algum género muito definido. É orgânico – a ponte, o rio, aquilo que ali se passa, naquele sítio que parece suspenso no tempo: “Isto não é um verdadeiro estúdio. Consegues ouvir quando os pescadores gritam, quando o cão ladra, quando as ondas sobem. Quando gravo tenho sempre a janela aberta, por isso há apenas sons puros do que gravo aqui. Por vezes até gravo com microfones na água, tenho um hidrofone que pode entrar na água...” Gravas o Tejo? “Gravo, sim. E depois estar aqui sentado nesta secretária olhando Lisboa, a ponte, a outra margem, influencia a música. Como influencia... é difícil para mim dizer exatamente como acontece.” Fala pausadamente.
“Estou muito feliz por estar neste sítio. Quando crio música, gosto de estar em sítios que não sejam estúdios. Não é o melhor para ouvir a música, mas eu não me importo. Prefiro um sítio onde me sinta bem”, diz Casper. Gosta de trabalhar à noite, quando está escuro e os sons se desvanecem. “O último ferry sai à 01.20 de Cacilhas [Cacilaz, diz ele] e sei que tenho de sair daqui à uma”, diz este português temporário, a lutar consigo próprio num gabinete que já foi de burocracias: “Para mim, este é um processo novo, sempre tive bandas e é diferente quando estás com amigos, podemos ser muito fortes juntos. Aqui sou só eu e tenho de me encontrar... como diz um amigo meu, quando estás a fazer um disco a solo é como uma sessão de terapia.”
Quando se instalou naquele gabinete, que pertencia à Sociedade Portuguesa de Pescas, encontrou-o cheio de antigos cadernos, que agora usa para tomar notas para o seu projeto. “Este escritório era uma es- pécie de espaço logístico. Quando vim, estava cheio destes diários por preencher. São a minha herança.”
Depois daquela tarde, em que as águas do Tejo se agigantavam (“nunca tinha visto o rio tão cheio desde que aqui estou”), não tardaria a meter-se num avião com destino ao Norte do continente para a digressão de 1982 dos Liima – significa cola, em finlandês. Esta é a sua banda mais nova, tem três anos e meio. Nasce de uma residência de “uma semana e meia no meio de nada na Finlândia, a fazer música”.
Liima: música testada em pessoas
Casper vive agora em Lisboa, mas esta é a sua terceira escala desde que, aos 18 anos, saiu da sua cidade natal, Sonderborg, na ilha de Als. Com ele seguiam os amigos Mads Brauer e Rasmus Stolberg. Foram então viver para Copenhaga e formaram os Efterklang. A banda de rock experimental surge em 2000 (significa reverberação, em dinamarquês) e editou cinco álbuns (quatro em nome próprio, e o último, Leaves – The Colour of Falling, uma ópera tocada com músicos de formação clássica e uma soprano, que levaram à cena num bunker abandonado da Guerra Fria).
Quando se juntaram naquela residência na Finlândia, Casper já vivia em Berlim. Com o trio dinamarquês foi o baterista Tatu Rönkkö, finlandês. “Os quatro começámos a fazer música juntos, de uma forma nova para nós. Todos numa sala a criar música e a procurar a música de que todos gostávamos, não apenas um. Esta espécie de songwriting coletivo tornou-se Liima.” Este é o segundo álbum (o primeiro foi ii)e chama-se 1982, ano em que Casper nasceu e em que a revista Time escolheu para figura do ano o computador pessoal. Uma música pejada de anos 1980, com sintetizadores que não pararam naquele tempo. “Liima é diferente de outros projetos que tenho feito porque incluímos as pessoas na música. Toda a música de 1982 foi testada ao vivo. Tocámo-la, mas começou sempre com os quatro juntos numa sala. Agora está num disco e as pessoas podem ouvir. É esta espécie de viagem que a música faz.”
O disco está agora a ser tocado, também em Portugal. “Sinto que uma canção nunca está acabada. Posso tocá-la por dez, 15 anos. Este processo é uma parte da forma de como as entregas [as músicas] às pessoas”, diz Casper Clausen. “Espero que venham e que sejam bons concertos!”
“Quando gravo tenho sempre a janela aberta, há apenas sons puros do que gravo aqui. Por vezes até gravo com microfones na água”