2001: ODISSEIA NO ESPAÇO
OS 50 ANOS DA “TRIP ABSOLUTA” DE STANLEY KUBRICK
O cinema como forma pura, experiência não verbal, êxtase do olhar. Foi esse marco que Stanley Kubrick atingiu com 2001: Odisseia no Espaço, o filme que o próprio comparou com a linguagem da música, e que ainda hoje se impõe na memória coletiva pelo enigma esculpido na sua grandeza. Quando, a 2 de abril de 1968, chegou ao ecrã do Uptown Theater em Washington, DC, houve quem não estivesse preparado para o impacto – tal como os símios (na primeira parte intitulada “A Alvorada do Homem”) não sabem se hão de temer ou venerar o monólito negro, de linhas perfeitas, que lhes surgiu como uma aparição. Assim também ficamos nós, Homo sapiens, diante dessa incógnita laje, à imagem dos macacos que tocam a medo a estrutura, em adoração.
Efetivamente, há um antes e um depois de 2001: Odisseia no Espaço. Tanto na história do cinema como na filmografia de Stanley Kubrick. Nunca a carga tecnológica de um filme tinha tido uma expressão tão solene, juntando a isso um desafio filosófico. E como todas as obras que trazem consigo o desconhecido, este não foi um caso de sucesso instantâneo. Algumas das primeiras críticas expunham o desconforto causado pela incompreensão do filme enquanto objeto narrativo. No entanto, houve também quem se entregasse plenamente à sua emoção estética, como experiência inaudita da ficção científica que era. Sobretudo o público mais jovem sentiu-se atraído pela ideia da “trip absoluta” que a Metro-Goldwyn-Mayer usou para vender o conteúdo… Para todos os efeitos, com o passa-palavra dos cinéfilos, 2001 conquistou grandes audiências, tendo até ao final de 1972 atingido um lucro de 31 milhões de dólares por todo o mundo, sobre os 10,5 milhões que tinha custado.
Este é um filme de quatro andamentos: primeiro conhece-se a referida “alvorada do homem”, que apresenta um grupo de símios a desenvolver a hierarquia comunitária, cujo ponto alto se traduz no contacto com o famoso monólito; logo de seguida, somos projetados para o futuro, no acompanhamento do gesto de poder do macaco que lança ao ar o osso, cruzando-se com a forma da nave espacial que transporta homens da Terra até um satélite artificial; e, posteriormente, há uma missão tripulada a Júpiter, na sequência do aparecimento do monólito na Lua. É nesta missão que Kubrick inscreveu um dos momentos mais icónicos da chamada conspiração da máquina contra o homem, prefigurado na revolta do computador HAL 9000, que governa a nave Discovery I, terminando – e este é o quarto andamento – em “Júpiter e além do infinito”, com um dos astronautas (Keir Dullea) a aceder a uma realidade alternativa, na sequência mais psicadélica de todo o filme.
Por conseguinte, 2001 liberta-se das amarras da narração tradicional para se constituir um traçado poético da história da humanidade, no encontro com (ou guiada por) uma inteligência extraterrestre. Este último ponto era o tema de partida de Kubrick, a base do projeto que o levou a procurar um escritor capaz de emprestar uma visão rigorosa sobre o assunto. O britânico Arthur C. Clarke (que tinha contactos na NASA) foi o autor que se adequou aos padrões de perfeccionismo do cineasta, tendo colaborado com este de um modo singular: enquanto Clarke escrevia o romance, Kubrick redigia o argumento, numa fecunda partilha de ideias.
Volvidos 50 anos sobre 2001: Odisseia no Espaço, há uma sensação que se mantém intacta: o deslumbramento com o bailado que Kubrick coreografou no espaço, essa perfeição técnica da mise-en-scène que é um arrepio filosófico. Foram muitos os que o sentiram, como Steven Spielberg, que lhe chamou o big bang da sua geração, mas também George Lucas, que disse ser “o melhor filme de ficção científica”, ou Ridley Scott, que, muito interessado nos grandes designs de produção no início da carreira, viu nele o exemplo supremo da sofisticação e da originalidade.
Não deixa de ser curioso que 2001 permaneça na história de Hollywood sobretudo pela sua proeza tecnológica. Foi o único filme que valeu a Stanley Kubrick o Óscar, na categoria dos efeitos especiais, ficando para sempre associado a um calibre técnico que, por ironia de eventos recentes – o facto de Linha Fantasma ter ganho apenas o Óscar de melhor guarda-roupa –, nos faz refletir sobre o seu peso real. É certo que as inovações do cineasta americano, com a sua vasta equipa, foram um passo incontornável para o uso dos efeitos especiais, mas reduzir esta obra-prima a uma aplicação de sabedoria científica é o mesmo que dizer que Linha Fantasma, de Paul Thomas Anderson, é um filme sobre vestidos bonitos…
São muitas as vozes que continuam a evocar o filme de Kubrick na comparação com o que de novo se vai produzindo dentro do género. E é natural, na medida em que se trata da referência máxima. Mas a verdade é que ninguém alcançou ainda o génio deste monumento fílmico. Nomeadamente, a sua depuração resultante dos sucessivos cortes que deixaram o mínimo indispensável de diálogos (cerca de 30 minutos em duas horas e 20), num infinito visual. Kubrick levou-nos ao mistério das estrelas.
Enquanto Arthur C. Clarke escrevia o romance, Stanley Kubrick redigia o argumento, numa fecunda partilha de ideias