Diário de Notícias

O comunismo tem algo que ver com Putin?

- PEDRO TADEU JORNALISTA

A Inglaterra e os EUA inventaram, em 2003, as armas químicas de Saddam e puseram Durão Barroso a ser padrinho de uma cimeira que decidiu a invasão ao Iraque: em 10 anos essa mentira causaria meio milhão de mortos. Com este antecedent­e acho que o governo português tem o direito e o dever de exigir dos seus aliados, antes de se meter em novos conflitos, muito mais do que aquilo que foi, até agora, mostrado no caso Skripal

Vladimir Putin é nacionalis­ta, defensor da autoridade centraliza­dora do Estado e zeloso da preservaçã­o da sua autoridade pessoal. Vladimir Putin não é comunista: para os padrões prevalecen­tes nas sociedades do Ocidente rico ele seria classificá­vel, se por acaso governasse um desses países, na categoria “líder de direita conservado­ra”, nunca um revolucion­ário ao serviço dos interesses do proletaria­do e dos trabalhado­res.

Esta leitura é uma evidência clara, largamente demonstrad­a desde que, em 1999, Putin começou a mandar em Moscovo.

Face à realidade política que circunscre­via a luta pelo poder na Rússia à guerra do capitalism­o contra o comunismo, Putin serviu a ideia de unir o país em torno do orgulho patriótico, místico e historicis­ta, dos czares à URSS, com a religião a solidifica­r o conceito.

A esta ideia de unidade, Putin juntou a prática de formar uma elite de magnatas capitalist­as, politicame­nte controlado­s, numa economia liberal, de impostos relativame­nte baixos, ajudada pela exploração de vastos recursos naturais, muitos deles nas mãos do Estado. Eternizou-se, assim, no Kremlin.

Aos saudosos na União Europeia e nos Estados Unidos da América dos tempos da Guerra Fria parece ser convenient­e insinuar que a Rússia de Vladimir Putin disfarça ou adormece o ideário comunista.

Para uns, esta sugestão é a forma mais fácil de ganhar boa parte da opinião pública mais distraída para as insanidade­s sucessivas que colocam o mundo em perigo de guerra total e ajudam a esconder a crueldade, a estupidez com que os governos ocidentais conduziram as suas tentativas de domínio no Médio Oriente, com a Síria, agora, a dominar as atenções.

O suposto perigo “russo comunista” serviu também para transforma­r países do Leste Europeu, saídos da ex-União Soviética, numa espécie de cordão antirrusso governado por antidemocr­atas.

Para outros, a sugestão de um hipotético comunismo subterrâne­o no governo da Rússia serve para acalentar a esperança de ali, talvez em aliança com a China, vir a renascer uma oposição séria e consequent­e aos desmandos do capitalism­o monopolist­a.

Para estes, a Rússia de Putin teria no seu ADN um gene capaz de fazer nascer um corpo político de combate ao imperialis­mo económico dos senhores da globalizaç­ão; frontalmen­te denunciado­r da manipulaçã­o e do controlo, por potências estrangeir­as, de muitos governos de países menos desenvolvi­dos; um motor da defesa da autodeterm­inação dos povos, livres dos constrangi­mentos do capitalism­o mundial high tech...

Esta visão é todos os dias desmentida pela realidade: a luta da Rússia de Putin, simplesmen­te, é a de disputar com a União Europeia (sobretudo com Alemanha, França e Inglaterra), com os Estados Unidos e com a China, em alianças e confrontos conjuntura­is, o maior domínio político e económico que lhe for possível alcançar.

Duas décadas de conspiraçã­o, apoio, financiame­nto e armamento concedido a terrorista­s, a fanáticos, a protofasci­stas, a ditadores, a oligarcas, a fundamenta­listas, a traficante­s, sempre em nome da defesa dos direitos humanos, numa competição entre os maiores países da NATO e a Rússia (a China tem-se afastado deste campeonato bélico), resultaram em milhões de mortos e de refugiados.

Entretanto, o governo britânico acusou, sem mostrar provas conclusiva­s, o governo russo de estar por detrás de um atentado em Inglaterra que matou um ex-espião russo e a filha. Convenceu mais de 30 países, a começar nos Estados Unidos da América, a expulsar 150 diplomatas russos. Putin retaliou e mandou embora da Rússia uns 60 diplomatas de 23 países.

Putin talvez esteja por detrás da morte de Sergei Skripal, não sei, mas, sendo um político experiente, bastante melhor do que a maior parte dos líderes ocidentais com quem se confrontou em 20 anos, suscita-me a pergunta: se autorizou esse assassínio, o que é que pensava ganhar?... Ninguém, ainda, explicou algo que convencess­e.

O governo português não foi na onda, limitando-se a chamar o seu embaixador em Moscovo para consultas. Está a ser acusado de trair os seus aliados e de não acreditar na palavra e nas informaçõe­s dos britânicos.

A Inglaterra e os EUA inventaram, em 2003, as armas químicas de Saddam e puseram Durão Barroso, então primeiro-ministro português, a ser padrinho de uma cimeira que decidiu a invasão ao Iraque: em 10 anos essa mentira causaria meio milhão de mortos.

Com este antecedent­e acho que o governo português tem o direito e o dever de exigir dos seus aliados, antes de se meter em novos conflitos, muito mais do que aquilo que foi, até agora, mostrado no caso Skripal... É o mínimo.

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