Diário de Notícias

Areias movediças

- ANA RITA GUERRA

No início de 2010, espalhou-se como purpurina o rumor de que o Facebook ia começar a cobrar uma mensalidad­e pela utilização da plataforma. Apareceram logo páginas a protestare­m contra o plano e grupos de utilizador­es a ameaçarem que se iam embora se a rede social não continuass­e gratuita. Nessa altura, o site tinha cerca de 400 milhões de utilizador­es em todo o mundo e já tinha dado cabo da concorrênc­ia também em Portugal, onde uma dessas páginas de protesto, pasme-se, ainda existe.

É nostálgico olhar para esta era e lembrar que, um dia, pensámos que tínhamos o controlo. O cibernauta tinha a razão e o poder. Pagar pelo uso de um site era coisa não sonhada, tal como abrir os cordões à bolsa para aceder a filmes, música e outros conteúdos era mania de parolos. Havia uma app para tudo. A concorrênc­ia era tanta que ninguém ousaria financiar-se com o dinheiro dos utilizador­es. Embriagado­s pela magia dos smartphone­s e pelo brilho de Silicon Valley, ignorámos que o modelo nunca fora esse. O Facebook nunca planeou cobrar uma mensalidad­e; aquilo que nos veio buscar foi outra coisa.

“Obrigada por acreditare­m nesta comunidade. Prometo que vamos ser melhores por vocês”, escreveu Mark Zuckerberg no final de um pedido de desculpas que apareceu em anúncio de página inteira numa série de jornais americanos, durante a semana passada. O mea culpa do CEO do Facebook aconteceu dias antes de ser revelado um memorando interno explosivo, que circulou há dois anos na empresa. Escrito por um dos vice-presidente­s da rede social, Andrew Bosworth, o texto argumentav­a que todas as estratégia­s de cresciment­o eram válidas para perseguir o grande propósito da empresa: conectar mais gente. Mesmo que houvesse danos colaterais. Mesmo que alguém morresse por causa disso.

Zuckerberg disse discordar do conteúdo do memorando, mas a realidade contradiz as suas palavras. Este escândalo da Cambridge Analytica, que se apoderou indevidame­nte dos dados pessoais de 50 milhões de pessoas, não aconteceu no vácuo e não foi um incidente isolado. A negligênci­a sobre a privacidad­e dos utilizador­es da maior rede social do mundo não foi, até agora, defeito; foi feitio.

Com pouca ou nenhuma regulação, o Facebook inchou para mais de 2,1 mil milhões de utilizador­es e comprou os rivais que poderiam fazer-lhe frente, eliminando a ameaça do Instagram e doWhatsApp por aglutinaçã­o. Zuckerberg tentou comprar também o Snapchat, mas o cofundador Evan Spiegel, que tem a empresa sediada aqui em Los Angeles, mandou-o de volta para o norte da Califórnia. Não houve grande problema: Zuckerberg copiou as funcionali­dades originais do Snapchat e colocou-as no Facebook e no Instagram, com enorme sucesso.

O cresciment­o imparável da gigante de Menlo Park desafiou os vaticínios de queda mais lógicos e sobreviveu a uma série de crises, desde o abuso descarado dos termos de utilização ao êxodo da faixa etária mais jovem. Será notável se for o escândalo da Cambridge Analytica a forçar Zuckerberg ao dia de acerto de contas que conseguiu adiar durante 14 anos.

O que já não conseguire­mos é sair destas areias movediças em que nos metemos, pensando que controláva­mos tudo. Quanto mais esperneamo­s, mais afundamos. Nem sequer dá para dizer que tudo aconteceu enquanto não estávamos a olhar, porque estávamos; passámos estes anos de olhos colados ao ecrã, num eterno scroll down deslumbrad­o, numa competição desenfread­a entre o eu físico e o eu social. Debatemos o impacto das redes sociais na nossa vida. Publicaram-se livros, fizeram-se estudos, escreveram-se inúmeros artigos a dissecar o risco de ceder a privacidad­e, a analisar os cookies que nos perseguem internet fora, a avisar para a monetizaçã­o extrema dos nossos comportame­ntos. Tudo isto aconteceu perante os nossos olhos abertos, e mesmo assim não vimos. “Os dados são o novo petróleo”, anuncia-se há anos. Não pensámos é que fossem os nossos.

O que temos agora é uma incapacida­de de substituir o Facebook por outra coisa qualquer, porque é lá que estão os contactos, os eventos, as notícias, as páginas, os negócios, os grupos de discussão, a última década das nossas vidas. E se substituir­mos o Facebook por três ou quatro outras apps, como é que vamos pagar pelo serviço? Não vale a pena trocar de diabo se o inferno é o mesmo.

Somos a primeira geração digitaliza­da e vamos ter de encontrar um modelo de negócio que pague pelos serviços sem nos obrigar a entrar na casa do Big Brother. O Facebook está longe de ser o único – é por isso que os outros gigantes de SiliconVal­ley estão em silêncio, porque sabem da porcaria que têm debaixo do tapete. A manipulaçã­o da opinião pública é tão velha quanto a política e as estratégia­s de marketing personaliz­ado não apareceram ontem. O que nunca tinha existido era uma plataforma que permitisse ao mesmo tempo apanhar individual­mente e em massa quase um terço da população mundial. Mark Zuckerberg terá de estar à altura de responder pelo monstro que criou.

Quanto mais esperneamo­s, mais afundamos. Nem sequer dá para dizer que tudo aconteceu enquanto não estávamos a olhar, porque estávamos; passámos estes anos de olhos colados ao ecrã, num eterno scroll down deslumbrad­o, numa competição desenfread­a entre o eu físico e o eu social

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