A vida de Winnie Mandela, um ícone caído em desgraça
Ex-mulher de Nelson Mandela morreu ontem aos 81 anos. Figura histórica e controversa na luta do ANC contra o apartheid
“Winnie Madikizela-Mandela foi um símbolo maior da luta contra o apartheid. Ela recusou ceder face à prisão do marido, a eterna perseguição da sua família pelas forças de segurança, as detenções, as proibições e o afastamento. A sua atitude de desafio inspirou-me profundamente, assim como a gerações de militantes.” Foi com estas palavras que Desmond Tutu, ex-arcebispo anglicano da Cidade do Cabo e nobel da Paz, ontem reagiu à morte de Winnie Mandela, vítima de doença prolongada aos 81 anos. O mesmo Desmond Tutu que em 1997 interrogou Winnie na Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul, à qual presidiu, nomeadamente sobre crimes que teriam sido cometidos com a sua autorização em nome da luta do ANC contra o regime do apartheid. Instada por ele a pedir perdão, Winnie declarou na sala de audiências: “Digo-o, é verdade, que as coisas correram terrivelmente mal (...) por isso peço desculpa.” No ano seguinte a comissão considerava-a “responsável, por omissão, de graves violações de direitos humanos”. Nessa altura Winnie levava já dois anos anos oficialmente divorciada de Nelson Mandela. E de “mãe da nação”, como era conhecida, passou a heroína caída em desgraça.
Natural de Bizana, na província sul-africana do Cabo Oriental,Winnie interessou-se pela política ainda muito jovem e também muito cedo veria a sua vida ficar indissociavelmente ligada à de Nelson Rolihlahla Mandela. Tudo começou numa pagarem de autocarro, onde se conheceram. Ela tinha 23 anos e tornarase a única estudante negra de serviço social no hospital de Baragwanath, na zona suburbana do Soweto. Ele via nela uma mulher apaixonada pela política e por ela própria enquanto pessoa individual. Tiveram duas filhas, Zenani e Zindzi, que ela criou praticamente sozinha. Enquanto ele esteve preso, de 1962 até 1990, desafiava o regime para ir vê-lo. Mas, com o tempo, as visitas e as cartas foram reduzidas, até quase não haver qualquer contacto, tendo ela sido presa, em 1967, em frente às filhas, ambas menores. “Ao longo de meses não soube o que acontecera às minhas meninas e essa foi a maior tortura.” Onde esteve presa, as mulheres estavam nuas, não tinham toalhas, não podiam limpar-se e quando estavam menstruadas o sangue escorria-lhes pelas pernas abaixo, contou a jornalista sul-africana Charlene Smith numa biografia que fez sobre Man- dela.
Ao longo dos anos de luta,Winnie emergiu como forte opositora do regime racista branco do apartheid mas, no final, quase que se autodestruiu. Formou o Mandela United Football Club, não para jogar à bola, mas alegadamente para ajudar a eliminar os opositores. Foi o que aconteceu com Stompie Seipei, um alegado informador de 14 anos, que foi raptado e morto, ao que tudo indica, sob as suas ordens. Isso mesmo admitiu um dos seus guarda-costas, em tribunal, algo que deixou o marido muito desiludido. Foi condenada a uma pena de seis anos de prisão que depois acabou por ver reduzida a uma multa. Na Comissão de Verdade e Reconciliação Winnie declarou: “Aproveito esta oportunidade para dizer à família do Dr. Asvat e à mãe do Stompie que lamento imenso.” Abu Baker Asvat era conhecido como o “médico do povo” e foi assassinado no seu consultório na zona do Soweto em 1989. Sul-africano de origem indiana, era um seguidor de Steve Biko (fundador do Movimento da Consciência Negra, assassinado pela polícia, aos 30 anos, em 1977).
Dos 38 anos em queWinnie esteve casada com Mandela, 27 foram passados com ele na prisão (18 dos quais na Robben Island). Para a história ficou a fotografia do dia da sua libertação da prisão Victor Verster a 11 de fevereiro de 1990 (passou por três cadeias): Mandela eWinnie surgem de punho no ar, a caminhar de mãos dadas, cumprimentando o povo em festa. Mas a união, passada na imagem, era frágil e a seguir veio a separação. Influência terá tido também a alegada descoberta do caso amoroso que ela terá tido com Dali Mpofu, um advogado da sua equipa de defesa, mais novo do que ela, escreveram na década de 1990 jornais como The Guardian e The Washington Post. Quando Mandela tomou posse na qualidade de primeiro presidente negro democraticamente eleito da África do Sul, em 1994, ela já não apareceu em público ao seu lado.
Em 2010, Nadira Naipaul, jornalista e mulher do nobel da Literatura V.S. Naipaul, publicou um artigo no jornal Evening Standard em que relatava uma conversa que tinha tido com Winnie na sua casa em Joanesburgo. “A preocupação que tinha era pelas minhas filhas”, terá dito na entrevista, que logo em seguida desmentiu apesar de o jornal britânico reafirmar a sua confiança em Nadira. Na tal conversa, escreveu a jornalista, Winnie terá dito também que Mandela desiludiu os sul-africanos negros com um acordo que os prejudicou. Winnie manteve-se, apesar de tudo, muito ligada ao ex-marido. Este casou-se, pela terceira vez, em 1998 com Graça Machel (que estava viúva do ex-presidente moçambicano Samora Machel). Estiveram juntas no funeral de Madiba, que morreu a 5 de dezembro de 2013, aos 95 anos.
Sempre ligada ao ANC, crítica do ex-presidente Jacob Zuma e defensora do polémico ex-líder juvenil do ANC Julius Malema,Winnie era deputada. O seu estado de saúde agravou-se em janeiro. Há poucos anos aceitara falar para o documentário Winnie, premiado no Sundance 2017. Acusada de tentar branquear a imagem de Winnie, a realizadora Pascale Lamche disse que quis apenas mostrar um outro lado da história. Em entrevista ao DN, em novembro, garantiu: “O que quis fazer com este documentário foi dar espaço para discutir Winnie como líder militar. O que era aceitável para um homem líder militar não era no caso de uma mulher. Isso tem que ver com o facto de ela ser vista como a mãe da nação e, por isso, não ser bem-vista como líder militar.”