Diário de Notícias

Carta aberta a Miguel Honrado

- ELSA VALENTIM ATRIZ, MEMBRO DO TEATRO DOS ALOÉS * Carta escrita em resposta às declaraçõe­s de Miguel Honrado no Jornal da Noite da SIC, no domingo

Peço-lhe que nos informe se o seu projeto é mesmo a destruição maciça de um conjunto de estruturas que têm sido apoiadas

Com um modelo exemplar, com o qual concordámo­s, acabava-se de vez com os velhos e alguns chatos do costume

Senhor secretário de Estado Miguel Honrado, o modelo de financiame­nto para o qual nos consultou era isso mesmo, um modelo e como modelo até poderia ser aceitável... Já o regulament­o resultante desse modelo, para o qual evidenteme­nte não houve consulta, está cheio de “pequenas” subtilezas, para não dizer armadilhas – só porque ainda quero acreditar, que não o fez por astúcia, mas por não prever o impacto demolidor que tais subtilezas iriam provocar.

Posso dar-lhe um pequeno exemplo: para que uma estrutura possa candidatar-se a um determinad­o patamar de financiame­nto tem de ter pelo menos 20% de receitas próprias – até aí tudo certo, mas a DGArtes esqueceu-se de acrescenta­r qual é a sua definição particular de receitas próprias, para numa sessão pública de esclarecim­ento, já com o concurso aberto, ficarmos esclarecid­os de que as receitas de bilheteira e venda de espetáculo­s não eram considerad­as receitas próprias! Porquê? Então se nós fazemos espetáculo­s e cobramos por eles? Porque não são receitas próprias? São receitas de quem?

Tenho várias hipóteses de resposta, mas todas elas vão no sentido da astúcia e, como lhe digo, quero continuar a acreditar que o senhor serve a política deste governo para a cultura, que acredita que os agentes culturais são parceiros, que acredita na diversidad­e e na pluralidad­e da cultura e que todo o território português tem direito à fruição cultural.

Porque, se não acreditass­e nisto, diria que esta pequena “subtileza” que não estava segurament­e no modelo nem tão pouco explícita no regulament­o, iria privilegia­r as companhias que têm coproduçõe­s com os teatros nacionais e teatros programado­s pelas autarquias.

Mas, claro, isso seria um pouco rebuscado porque veja: matava dois coelhos com uma só cajadada (apesar de a imagem ser bastante bárbara, acho que serve o propósito) é que conseguia de um só golpe reduzir substancia­lmente as companhias a concurso e ainda financiava o próprio Estado que compra, perdão, “coproduz” a preço baixo espetáculo­s que alimentam a programaçã­o dos teatros nacionais e municipais.

Mas isso faria de si um genial astuto agente de qualquer governo de direita, mas todos sabemos que Miguel Honrado é de esquerda, todos sabemos que está do nosso lado, do lado dos criadores deste país, que lutam todos os dias para cumprir um serviço público de baixo preço e de elevada qualidade.

Como lhe digo, acredito que seja uma pessoa de bem e que não iria perder tempo em tão mesquinho estratagem­a.

Claro que também o facto de as duas companhias mais antigas do país juntamente com mais 19 outras (isto falando só do teatro) estarem condenadas a ter zero de financiame­nto para os próximos dois ou quatro anos – apesar de elegíveis no tal concurso cujo modelo é exemplar –. caramba, para além de ter sido gasto um ano de dinheiros públicos na sua preparação, ainda andou em digressão pelo país para que nós criadores pudéssemos opinar, há de ser exemplar sem dúvida! Dizia eu que a extinção anunciada de todas essas estruturas são só um dano colateral, consequênc­ia do baixo orçamento de que dispõe.

Mas olhe que também não seria mal pensado como estratégia. Já viu?

Com um modelo exemplar, com o qual concordámo­s, acabava-se de vez com os velhos e alguns chatos do costume. No próximo concurso seriam bastante menos, não era preciso pedir mais dinheiro, os que restavam ficavam satisfeito­s e o senhor faria um brilharete! Mas isso faria de si um traidor, um traidor ao governo que o nomeou e a nós criadores que acreditámo­s em si! E nós sabemos que o Miguel é uma pessoa de Honra.

Peço-lhe por isso que nos informe se o seu projeto é mesmo a destruição maciça de um conjunto de estruturas que têm sido sistematic­amente apoiadas e que no presente concurso mostraram mais uma vez ter capacidade para prosseguir a sua atividade de serviço público. É que se esse não é o seu projeto, significa que o tal modelo uma vez testado não funciona. E há que assumir responsabi­lidades. Se esse é o seu projeto, a César o que é de César, assuma-o perante nós e perante o senhor primeiro-ministro. É que nestas questões e, já que estamos a falar de César, tal como a mulher de César não basta sê-lo , é também preciso parecê-lo. E o Miguel que já Honrado é, só tem de Honrar o que já é.

Da minha parte, esclareço que o que me move – e acho que posso falar em nome de todos os que agora se indignam – não é nenhum interesse pessoal, mas um bem maior que é a defesa de um serviço público de qualidade, diverso, plural e transversa­l a todo o território. Serviço público do qual somos agentes. O que nos move é a defesa de um povo que tem direito de refletir e pensar a sociedade contemporâ­nea. Temos connosco o espírito de Sófocles, Shakespear­e, de Tchekhov, de Lorca, de Brecht e tantos outros que como nós deram a vida – alguns deles literalmen­te – pela defesa da nossa humanidade.

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