O homem pendurado na ponte
Como dizia o Dr. Pangloss, aquele turista que andou por cá em dia mau de 1755, este é o melhor dos mundos.Voltaire, em Cândido, escreveu que enforcámos o Pangloss num auto-de-fé. Quero crer que não. Sou panglossiano e acho que o mestre de
não só sobreviveu como deve ter comprado dois ou três prédios na Baixa Pombalina, então novinhos, e deixou aos herdeiros uma fortuna. Pois é verdade, não só este é o melhor dos mundos como é cada vez melhor: vejam aquela aplicação, a Waze! Ainda há meia dúzia de anos, se eu quisesse ir daqui para ali, punha a cabeça de fora do carro e falava com gente que me dizia “não sou de cá!” e andava. E eu andava para onde?! Mas agora veio a Waze, que me indica não só o percurso mas o tempo para lá chegar. E irmãos automobilistas previnem-me de engarrafamentos e dão-me boas dicas para o percurso. Nada é capaz de parar o progresso! Ou, para ser mais sincero, ele para sozinho... Ontem, pela Waze, quando quis saber por onde ir porque a Ponte 25 de Abril estava fechada,conheci o problema do progresso: o preço do progresso.Perguntei:“Como ir para a Outra Banda?” E aWaze respondeu com desumanidade: mostrou a foto de um homem pendurado na ponte. Nada deve ser menos público do que um homem sozinho com a morte. Ele não precisa de aplicações nem de progresso. E ontem a Waze, da gente tão generosa que nos outros dias me oferece até aquilo que não pedi – “logo depois de virar para Leiria, na segunda saída, há um restaurante fantástico” –, enfim, aWaze de anónimos amigalhaços e desinteressados, ontem, estava povoada de hienas famintas.“Atira-te!”...“Mergulha de vez que tenho de ir para casa”... Mas o homem pendurado na ponte não tinha uma aplicação na mão a indicar-lhe o mau caminho.Teve uma mulher com conversa e a mão estendida. Ele não se deitou ao rio e regressou para onde eu não tenho nada de saber. E eu aprendi que não ia nem vinha do melhor dos mundos.