Diário de Notícias

Voltando a Keynes

- POR VÍTOR BENTO

Outro seu contributo muito importante foi o reconhecim­ento de que os desequilíb­rios de balança de pagamentos, défices e excedentes são ambos desequilíb­rios económicos, e por isso, sobretudo em sistemas de câmbios fixos, a sua correção é responsabi­lidade comum de ambos os lados, sob pena de todo o processo ser enviesadam­ente deflacioná­rio e desnecessa­riamente recessivo (como mostrou o padrão ouro e a crise do euro).

Este contributo não entrou na corrente dominante do pensamento económico porque os dois lados do problema – credores e devedores – têm um enorme desequilíb­rio de poder, em favor dos primeiros, pelo que, sem arbitragem supranacio­nal, o ajustament­o acaba por se tornar “compulsóri­o para os devedores e voluntário para os credores”. Os devedores são forçados a ajustar porque os défices precisam de financiame­nto, e este, a dado momento de acumulação de dívidas, é-lhes recusado pelos credores. Estes, porém, não têm nada que os force a fazer a sua parte do ajustament­o, sobretudo quando os devedores são coagidos a agir primeiro, prevenindo, dessa forma, a única pressão eficaz sobre os credores, que seria o default.

Este desequilíb­rio de poderes desagua numa narrativa pretensame­nte “moralista” dos desequilíb­rios: défices são mau comportame­nto e excedentes são, quando muito, excesso de virtude. Só que tal narrativa é moralmente (sim, moralmente!) errada, porque os dois lados do problema são “desvios comportame­ntais“(e já Aristótele­s ensinava que o excesso de virtude é vício, princípio de que deriva o ditado “no meio é que está a virtude”). Os excedentes são tão prejudicia­is ao equilíbrio económico quanto os défices, pois drenam procura do sistema que, se não for compensada pelo excesso de procura dos deficitári­os, causa recessão no sistema.

Num sistema de câmbios fixos, o ajustament­o deverá ser feito por desvaloriz­ações internas (reduções salariais, para simplifica­r) do lado deficitári­o e revaloriza­ções internas (efeito simétrico) do lado excedentár­io. As primeiras provocam deflação e as segundas potenciam inflação. A recusa da segunda consequênc­ia leva a que o ajustament­o feito unilateral­mente apenas do lado dos deficitári­os provoque custos sociais mais elevados, mesmo ao nível sistémico (e não apenas nos devedores).

Provoca custos mais elevados porque, como referi no artigo anterior, os salários nominais têm uma grande resistênci­a à baixa, e requerem grandes recessões (e o consequent­e exagero do desemprego) para produzirem o ajustament­o necessário ao reequilíbr­io. O resultado é uma exagerada deflação, e consequent­e espiral recessiva, que acaba por se transmitir aos países excedentár­ios, gerando perdas de bem-estar absolutas em todo o sistema (como se viu na recente crise do euro). Por isso, “o credor não deve poder ficar passivo”, caso em que “uma tarefa intolerave­lmente pesada será colocada ao país devedor, que já se encontra ... na posição mais fraca”.

E não é verdade que Keynes fosse inflacioni­sta. No seu plano financeiro para a II Guerra Mundial, por exemplo, advertiu que “a inflação... será claramente vantajosa para a classe mais rica” e “será mais onerosa para os rendimento­s mais baixos”. E, noutra ocasião, escreveu que “não há forma mais subtil, nem mais segura, de minar as bases da sociedade do que debochar a sua moeda”.

Mas tinha também consciênci­a de que a deflação tem custos sociais mais elevados e é mais difícil de reverter do que a inflação, pelo que, entre os dois riscos, achava socialment­e preferível evitar o primeiro. Tanto mais que “os mecanismos do moderno mundo dos negócios está ainda menos adaptado às flutuações para cima no valor do dinheiro [i.e. à queda de preços] do que às flutuações para baixo”.

A visão contrária mais relevante é a do modelo alemão do pós-guerra, que prefere o risco de deflação ao de inflação (apesar de, contrariam­ente à mitologia estabeleci­da, a ascensão do nazismo ter sido muito mais favorecida pela Grande Depressão dos anos 1930, do que pela hiperinfla­ção dos anos 1920, aliás resolvida em pouco tempo, quando se fechou a torneira do financiame­nto ao Estado); é adepto da (errada) narrativa “moralista” dos desequilíb­rios externos; e, portanto, é hostil às revaloriza­ções internas para corrigir os seus excedentes. Mas uma tal visão é incompatív­el com o equilibrad­o funcioname­nto de uma união monetária, impondo-lhe um viés deflacioná­rio, por colocar todo o ónus dos ajustament­os externos nos membros deficitári­os (como se viu).

Este modelo, que se mostrou muito eficaz no desenvolvi­mento económico da Alemanha, e do qual se compreende que esta não queira abdicar, só é compatível com a saudável convivênci­a económica com os outros países se dispuser de uma moeda flutuante (i.e revalorizá­vel), como foi o caso do pós-guerra até à criação do euro. E como se tornou muito claro para a própria Alemanha durante o regime de Bretton Woods, onde as preferênci­as sociais dominantes, e com poder para “impor” os seus efeitos aos demais (inflação nesse caso), eram as americanas. E por isso se descomprom­eteu, daí para a frente, com a defesa da estabilida­de cambial do marco, que era regularmen­te revaloriza­do. Sem esse escape, acabou com uma “moeda” subvaloriz­ada e a sua competitiv­idade subsidiada pelas economias mais fracas. P.S. Interrompo aqui esta colaboraçã­o, porque outros compromiss­os me reclamam tempo e atenção, que ficam a faltar para este exercício. Agradeço à direcção do jornal a oportunida­de que me foi dada e aos leitores a atenção que me dedicaram

Não é verdade que Keynes fosse inflacioni­sta. No seu plano financeiro para a II Guerra Mundial, por exemplo, advertiu que “a inflação... será claramente vantajosa para a classe mais rica” e “será mais onerosa para os rendimento­s mais baixos”

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