Diário de Notícias

ATRÁS DE CADA DESPEJO HÁ UM ROSTO

São moradores dos bairros históricos de Lisboa, expulsos das casas. Estão em “resistênci­a” com o apoio do presidente da junta

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RUTE COELHO “Tenho 79 anos. Nasci na casa onde sempre vivi, em Alfama. Foi preciso vir uma miúda com 20 e tal anos para me expulsar. Pois eu dali só saio morta!” Chama-se Felicidade Silva mas o seu rosto idoso e cansado não mostra o estado de alma do nome. Recebeu uma saraivada de palmas depois do seu testemunho, a atestar bem a solidaried­ade que une os moradores nos cinco bairros históricos da junta de freguesia de Santa Maria Maior (Alfama, Baixa, Chiado, Castelo e Mouraria), em Lisboa, reunidos ontem em assembleia no Palácio da Independên­cia para a iniciativa “Os Rostos do Despejo”.

Despejados, com data marcada para deixarem a casa onde alguns nasceram e criaram os filhos, esses rostos têm nome, são “gente de carne e osso”, como disse o presidente da junta, o socialista Miguel Coelho, autor desta campanha contra o esvaziamen­to do coração histórico da cidade em nome dos interesses imobiliári­os e turísticos.

O despejo e o desprezo não escolhem idade. Inês Andrade é um dos rostos novos na lista, já bem conhecida dos lisboetas pelo seu papel à frente da associação Renovar a Mouraria. Foi uma das pessoas que se levantaram para dar o seu testemunho: “Vivi na Mouraria desde 1999 até ao final do ano passado, altura em que o senhorio decidiu aumentar-me a renda de 500 para mil euros. Procurei casa mas está impossível.” Na Renovar Mouraria Inês tem recebido “todos os dias dezenas de pessoas que estão a receber ordens de despejo”.

“Estamos no abismo”, clamou o presidente da junta para a multidão revoltada contra os “hostéis” uma das expressões que mais se ouviu ali. O abismo tem números a sustentá-lo: existem 1676 unidades de alojamento local (UAL) na freguesia de Santa Maria Maior, ou seja, 47,21% do total de UAL no centro histórico (3550). O total em Lisboa é de 6073 unidades.

A junta de freguesia colocou três advogados ao serviço (gratuito) dos moradores que estão a ser despejados numa “estratégia de resistênci­a” como a definiu Miguel Coelho. Os advogados “aconselham estas pessoas a ir a tribunal. Ninguém tem de aceitar, só com ordem do juiz”, sublinha o autarca.

Eduardo Correia

Tem até 1 de agosto

O caso de Eduardo Correia, 82 anos, que também se levantou para falar na assembleia de freguesia, mereceu aplausos entusiásti­cos. “Represento a Natália Correia, minha mulher, que nasceu há 82 anos na casa onde vivemos, em Alfama. Eu estou ali há 60 anos. Recebi uma ordem de despejo para abandonar a casa até ao dia 1 de agosto de 2018. Mas não abandono a casa nem a minha mulher. Dali só saímos mortos.”

O antigo serralheir­o mecânico contou ao DN que a renda da casa no Beco das Cruzes, n.º 11, 1.º esquerdo, começou por ser de 150 escudos (75 cêntimos), passou para 700 escudos (3,5 euros ) e depois, já na época do euro, para 30 e poucos euros e, por último, para 70 euros. Em agosto de 2017, o casal recebeu uma carta a fechar o contrato de arrendamen­to alegando que a inquilina, Natália, não respondeu no prazo de 30 dias a um aviso escrito sobre a atualizaçã­o da renda para 70 euros em 2013. “Em agosto de 2013 o marido da senhoria avisou que íamos receber essa carta mas disse para ignorarmos. Fomos enganados.” A última proposta da senhoria foi estender mais um ano de arrendamen­to para o casal mas a pagar 450 euros de renda. “Os advogados da junta, que nos estão a ajudar, nem respondera­m. Vamos esperar.”

Felicidade Silva

Tinha até fevereiro

“Fui enganada”, desabafa Felicidade Silva, 79 anos, residente com o marido no Pátio do Prior, n.º 11, r/c em Alfama. “Nasci naquela casa.” Pagava agora 105 euros de renda. “A senhoria mandou-me uma carta em setembro de 2017 para deixar a casa em fevereiro deste ano.” Mas Felicidade e o marido não arredaram pé. “Aquela miúda está a dar cabo de mim, nem aparece para falar connosco e mandou-me a renda para trás”, desabafa, referindo-se à jovem senhoria. Aconselhad­os pelos advogados da junta, Felicidade e o marido têm depositado sempre o valor da renda na conta da senhoria, para a falta de pagamento não ser argumento quando for a altura.

Elisa Vicente

Tem até 30.04.2019

Levantou-se na assembleia para falar mas rapidament­e se sentou e calou, tomada pelas lágrimas. Conseguiu mais tarde fazer a sua intervençã­o. Ao DN, Elisa Vicente, de 76 anos, conta que mora com o marido em Arco Escuro, Alfama, há cinco anos mas viveu mais de 40 anos naquele bairro. “Recebi carta do senhorio em como não me renovava o contrato porque vendeu o prédio a uma firma. Tenho de arranjar casa até 30 de abril de 2019 mas o meu marido está acamado, não fala nem anda. Vamos para onde?” A renda que o casal paga é de 450 euros. O marido tem uma reforma de 800 euros de funcionári­o dos seguros e Elisa aufere 400 euros.

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Moradores dos bairros históricos de Lisboa, expulsos das casas, resistem com apoio da junta
 ??  ?? Em cima, Felicidade Silva, 79 anos. Em baixo, Eduardo Correia, 82, e Elisa Vicente, 76. São três dos “rostos do despejo” que ontem falaram na assembleia da freguesia de Santa Maria Maior
Em cima, Felicidade Silva, 79 anos. Em baixo, Eduardo Correia, 82, e Elisa Vicente, 76. São três dos “rostos do despejo” que ontem falaram na assembleia da freguesia de Santa Maria Maior

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