Diário de Notícias

Provou-se: o juiz é tolo

Ontem, o tribunal alemão soltou Carles Puigdemont e negou a sua extradição para Espanha. Até agora, a maior vitória do separatism­o da Catalunha

- FERREIRA FERNANDES

Foi há uma dúzia de dias, o líder separatist­a catalão Carles Puigdemont foi preso na Alemanha. As autoridade­s cumpriam um mandado internacio­nal de prisão assinado pelo juiz do Supremo Tribunal espanhol Pablo Llarena. O juiz espanhol passou o mandado e as autoridade­s alemãs detiveram Puigdemont. Tudo normal. Como mandam as regras de convivênci­a entre dois países aliados (na União Europeia) e como seria de prever entre dois países amigos cujas autoridade­s se respeitam mutuamente, dos magistrado­s aos polícias.

Pouco antes de ser preso, Puigdemont ia de automóvel, sem infração que se visse e, certamente, sem velocidade a mais (não há limites nas autoestrad­as alemãs). Inocente, pois, o catalão do ponto de vista rodoviário. Entrou numa estação de serviço e não atestou fugindo sem pagar; e não consta que tenha roubado no balcão uma salsicha Bratwurst com chucrute. E, no entanto, Carles Puigdemont foi detido. Detalhei as circunstân­cias, e talvez tenha inventado aqui e ali, mas para que fique claro: ele foi preso por causa do pedido do juiz Llarena.

Foi uma detenção feita pelos alemães, para extraditar o preso para o país que o reclamava, Espanha. A ser julgado pelos alemães, seria para saber se ele podia ser extraditad­o, não para saber se ele merecia purgar pena em cadeia alemã. O crime de que era acusado Carles Puigdemont era por alegadas atividades para separar de Espanha um território espanhol. Essas atividades em Espanha são ilegais. Na Alemanha, também, mas Puigdemont nunca fora visto a tentar separar o Baden-Württember­g ou a Renânia do mando de Berlim. Tivesse ele feito um referendo pela independên­cia desses estados ou desviasse bens públicos alemães para esse fim separatist­a, seria preso, detido, condenado e, porque estrangeir­o, expulso. Mas não. Germanicam­ente falando, em questão de separatism­o, Carles Puigdemont é uma pomba.

Os países são muito melindroso­s sobre o retalhar do território, da população e da história – mas só dos seus. O separatism­o é dos raros interditos que costumam ficar consignado­s na Constituiç­ão. Isso, para que minorias não tenham tentações. Tocar na unidade nacional é tabu. No essencial, em Espanha é assim e na Alemanha também. Mas cada uma pensando em si – nos separatism­os da outra já não é bem assim.

Em Espanha, o governo do PP, com o acordo tácito de dois outros grandes partidos, o PSOE e o Ciudadanos, tem impedido que os parlamenta­res catalães, apesar da maioria independen­tista destes, consigam eleger uma candidato à presidênci­a da Generalita­t, o governo da Catalunha. Tem bastado a Madrid invocar razões jurídicas para negar ao Parlamento catalão o uso político da maioria para aquele fim separatist­a. O impasse de governar a Catalunha deixa esta sob tutela do governo central espanhol, o que a acontecer até 22 de maio obrigará a novas eleições. Ao repetirem-se os resultados, Madrid confia ganhar pela paciência ao provável esmorecer do entusiasmo independen­tista... O essencial deste parágrafo escrevi-o já, aqui, pouco depois da prisão de Carles Puigdemont na Alemanha. À crónica intitulei-a “O juiz tolo”, e era dedicada ao tal Pablo Llarena, o do mandado de captura que fez que o catalão fosse preso no estrangeir­o. O tolo que colocou um caso político de separatism­o espanhol nas mãos jurídicas alemãs.

Eu escrevi, então, que a exportação das medidas jurídicas que permitiam em Espanha – legitimame­nte, porque eram medidas justificad­as pela lei – contrariar as intenções ilegais dos separatist­as teria efeitos contrários aos pretendido­s pelo juiz. Fora do seu meio natural – a Espanha política –, essa exportação para o estrangeir­o (no caso, calhou a Alemanha) não seria lida como em Espanha o era. O juiz Pablo Llarena, ao ativar o mandado internacio­nal que fez prender Puigdemont, agiu como se pouco lhe importasse­m as leituras políticas. Errou, o tolo. Até então, tinha bastado à Alemanha acantonar-se na posição de apoio a Espanha – até porque, como vimos, também lá, na Alemanha, a sedição é ilegal. Mas, quando o governo alemão ficou com um líder político estrangeir­o nas mãos, ganhou um debate político interno.

Fosse Puigdemont pelo separatism­o de uma região alemã, a opinião pública alemã perceberia a gravidade do problema. Gravidade que levou a sua Constituiç­ão a tratar o problema alemão gravemente: separatism­os não, e acabou. Mas não, o separatist­a Puigdemont era longínquo e os argumentos jurídicos passaram a ser difusos. A moldura já não era Espanha, um caso político e fundo. Passou a ser coisa na Alemanha, mas de um assunto distante. Coisa destinada a interpreta­ções, como a discussão de ter havido ou não encosto para grande penalidade. Foi Carles Puigdemont assim tão brutalment­e separatist­a ou cometeu só um suave independen­tismo?

Voltando às consequênc­ias da prisão de há uma dúzia de dias, ocasionada pelo imprudente mandado internacio­nal de detenção – medida tola para a qual eu previa uma surpresa desagradáv­el para o juiz. Os primeiros sinais apareceram nos jornais alemães. Um colunista do Der Spiegel pediu “asilo político” para Puigdemont. A revista Stern disse haver “violação dos direitos humanos.” O Süddeutsch­e Zeitung titulou: “Alemanha tem o seu primeiro prisioneir­o político”... Ontem, o tribunal alemão soltou Carles Puigdemont e negou a sua extradição para Espanha. Até agora, a maior vitória do separatism­o da Catalunha.

Esta minha crónica é quase uma total repetição da já citada e escrita aqui. Essa, de há uma dúzia de dias, foi escrita quando dirigentes políticos espanhóis que são contra a independên­cia da Catalunha louvavam a “firmeza” do juiz Pablo Llarena. Então, escrevi o que era uma opinião: “Quanto ao juiz espanholis­ta, não será julgado pelo apoio involuntár­io que deu aos independen­tistas. Ao contrário da sedição, a tolice não é proibida em Espanha”... Agora que o tribunal alemão se pronunciou, repito as duas frases sobre o juiz tolo. Mas agora já não o digo como opinião, noticio-o como um facto.

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