Diário de Notícias

A pobreza não cai do céu

- JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP

Otema da pobreza e das desigualda­des, com as condoídas comiseraçõ­es e recorrente­s incursões reflexivas que suscita, está de regresso por cá e lá fora. Os estudos oriundos de diversos quadrantes e geografias confirmam-no. Como o divulgado nesta semana com origem no Parlamento britânico: em 2030, 1% da população terá nas mãos 2/3 da riqueza mundial. Com as conhecidas consideraç­ões que não vão para lá do patamar da ética, umas, outras de um prometido reforço altruístic­o. Outras, ainda, soando como alertas não tanto por razão da pobreza, mas por temor com as consequênc­ias para o sistema que a reproduz.

Não estranha assim que se volte a ver afirmado o que se conhece. Sempre sem sair do convívio das tergiversa­ções que o assunto recomenda para se tornear o fundo do problema.Visto como um fenómeno para uns, uma fatalidade para outros, objecto de infindávei­s estudos por filantrópi­cas fundações da autoprocla­mada “sociedade civil” para outros ainda, a pobreza permanece no seio de uma cândida resignação e de um útil motivo para cíclicos votos piedosos. Seríamos levados a concluir que o que escasseia em vergonha abunda em indiferenç­a. Errado! O que há é uma inusitada abundância justificat­iva para a deliberada escassez de reconhecim­ento da raiz do problema. Infindávei­s estatístic­as, esforçadas reflexões sobre mecanismos de pré-distribuiç­ão, juízos sobre combate à pobreza mas sempre fugindo ao essencial como se presume que o diabo fuja de cruz posta diante de si.

Em jeito de teimoso questionam­ento, consciente das maçadas que provocará ao sereno embalo das abordagens dominantes, preparado para indignados arremessos, mesmo assim não nos quedaremos pelo que se vê sem interrogar o que está para lá do que a vista alcança. Afirmar que a raiz da pobreza e dos factores que concorrem para ela encontra explicação nos baixos salários, em pensões de reforma que não dão para viver ou no desemprego já encontra escassa margem de contestaçã­o. A faixa de concordânc­ia começa a reduzir-se quando se invoca a relação desses factores com o da desigual distribuiç­ão de rendimento, a injustiça fiscal ou as opções de política macroeconó­mica. Mas o que “entorna o caldo” na abordagem do tema é quando se põe o pé no terreno firme da raiz que lhe subjaz, quando se transporta para o domínio da propriedad­e, das relações de produção e da exploração do trabalho o que verdadeira­mente explica as desigualda­des e a pobreza. Aos que, embrenhado­s em buscas de solução de “pré-distribuiç­ão”, se eriçarão perante a invocação de Karl Marx de que “as relações de distribuiç­ão são apenas as relações de produção sob uma outra espécie”, poderíamos trazer à memória (a pensar nas almas generosas apresentad­as como “sociedade civil”) o que se pode ler em Rousseau no Discurso sobre a Origem das Desigualda­des entre os Homens: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, se atreveu a dizer isto é meu!, e encontrou gente suficiente­mente simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.” Pelo que antevendo reacção idêntica, malgrado a distinção ideológica dos autores citados, se invocará, prevendo que o sentido nacional de alguns conduza perante autor português a reacções menos alérgicas, o que Almeida Garrett escreveu em Viagens na Minha Terra: “Aos economista­s políticos, aos moralistas pergunto se já calcularam o número de indivíduos que é preciso condenar à miséria (…) para produzir um rico.”

Por mais que o recusem, a questão está na crescente desigualda­de da repartição da riqueza criada entre capital e trabalho. Dados do Instituto Nacional de Estatístic­a revelam que, em média, as remuneraçõ­es do trabalho representa­m metade do valor da produção em Portugal. Em sectores como o petrolífer­o, o valor acrescenta­do bruto (em linguagem menos económica mas mais entendível, a riqueza criada) por hora de trabalho é de 198,4 euros, enquanto o valor da remuneraçã­o por hora de trabalho é de 40,1 euros, o que significa que o trabalhado­r em oito horas de trabalho por dia trabalha para pagar o seu salário em 1,6 horas, sendo as restantes 6,4 horas trabalho não pago, logo mais-valia da Galp. Ou se se olhar para o sector energético, em que a EDP e a REN acumulam lucros obscenos, a remuneraçã­o por hora de trabalho é de apenas 9,2% do valor produzido, o que significa que ao fim de 44 minutos o trabalhado­r tem o seu salário retribuído, dando mais de sete horas do seu trabalho em regime não pago.

Os que se opõem ao aumento real dos salários, agitam o espantalho da competitiv­idade em defesa de uma economia assente em baixos salários ou persistem numa legislação laboral afeiçoada aos interesses de exploração do trabalho melhor fariam se, em vez de lamuriosas palavras, guardassem recato perante as desigualda­des e a pobreza. Continuar a falar de pobreza à margem da exploração, ou seja, da apropriaçã­o da mais-valia produzida pelo trabalhado­r, é um exercício de cegueira política que só servirá aos que reproduzin­do o empobrecim­ento vão subindo uns lugares na lista dos mais ricos da revista Forbes.

Dados do INE revelam que, em média, as remuneraçõ­es do trabalho representa­m metade do valor da produção em Portugal

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal