Diário de Notícias

Dos convites que levam às guerras à despedida amarga das lendas

- FERREIRA FERNANDES

“Nunca disse quando lançaria o ataque à Síria. Pode ser em breve ou não tão imediato” (do tuiteiro do costume)

Em 1950, num discurso de jantar para a nata dos jornalista­s americanos, no National Press Club, em Washington, o então secretário de Estado Dean Acheson traçou o mapa que a América não deixaria ser pisado pelos comunistas: a linha descia pelo Japão, as ilhas Ryukyus e Filipinas... Esqueçam as ilhas Ryukyus, só a Wikipédia se lembra delas, e o Japão e as Filipinas não vêm ao caso. O importante não foi o dito mas o não dito: Dean Acheson não falou da Coreia. E essa ausência foi interpreta­da como um encolher de ombros americano, caso a Coreia do Norte tentasse anexar a Coreia do Sul. Ai é?, disse-se em Pyongyang, capital norte-coreana, com um suspiro de alívio. E por isso ousaram atravessar o paralelo 38 e conquistar­am Seul, a capital da Coreia do Sul. Seguiu-se uma guerra de três anos, um milhão de soldados e duas vezes e meia mais de civis mortos.

Oito dias antes de invadir o Kuwait, em agosto de 1990, o líder iraquiano Saddam Hussein convidou a embaixador­a americana em Bagdad, April Glaspie, a tomar chá. Saddam perguntou-lhe sobre a atitude de Washington se ele invadisse o Kuwait. E o mais claro e perentório que ficou registado sobre as palavras e atitudes da embaixador­a naquela tarde foi: tomou chá. Saddam julgou perceber. Se duvidou, recorreu aos muitos exemplos na mais que milenária história da Mesopotâ- mia, para, comparando, concluir o que ele queria. O silêncio e a ambiguidad­e da americana só podiam ser um convite para invadir... Numa só tarde, de um convite gentil a outro alegado convite tácito, concluiu-se uma guerra. E o Médio Oriente assim continua quase três décadas depois...

Ontem, a bandeira de Damasco, da Síria oficial de Assad, voltou a ser erguida sobre Douma, o último bastião de Ghouta Oriental que estava nas mãos dos rebeldes, desde 2012. Douma é um daqueles nomes obscuros que ganham celebridad­e mundial para azar dos seus habitantes: no sábado foi lá que aconteceu o ataque químico que fez 46 mortos e 500 feridos. Por causa disso, o presidente americano ameaçou o regime sírio com mísseis. É certo que depois o Twitter de Trump acalmou-se: “Nunca disse quando lançaria o ataque à Síria. Pode ser em breve ou não tão imediato.” Enfim, por uma vez uma ambiguidad­e americana que não incita, não acirra, parece até desejosa de acalmar. Que bom! A menos que...

Acontece que Damasco está, desde ontem, a colocar as suas forças mais vulnerávei­s a um bombardeam­ento americano sob a proteção dos aliados russos. Na própria Douma, que foi agora reconquist­ada graças às tropas de Putin, os tanques sírios juntam-se a elas. Os russos são, julgam os sírios, uma companhia dissuasora do ataque americano. E os aviões sírios estacionam junto a aviões russos, como pintainhos sob as asas maternais... Parece, assim, que se ganhou – os sírios e o mundo – uma certa tranquilid­ade. Mas lembram-se dos precedente­s parágrafos? Lembram-se do que se seguiu ao sentimento de permissão de um jantar em 1950 e de um convite para tomar chá em 1990? Ilusões que se pagaram caro...

As guerras, se calhar mais do que tudo na vida, são regidas pela lei de Murphy: “Tudo que é suscetível de correr mal, corre.” Quer dizer, correr mal seria as tropas sírias serem atingidas – com o habitual pretexto para o Médio Oriente se aproveitar de um azar para o transforma­r em mais um cortejo de incêndios. Mas, como muitos também dizem, a lei de Murphy é otimista. Acima dela haveria outra lei que diz: “Quando algo se prepara para correr mal, aparece outra coisa pior.” Coisa pior seria o patamar regional ser ultrapassa­do e um eventual bombardeam­ento atingir tropas russas. Já se disse, os sírios estavam ontem convencido­s de que o escudo russo era eficaz. Ah, como é perigosa a ilusão da tranquilid­ade...

Eu estou convencido de que o futebol foi inventado para gerir essa nossa tendência para o desastre. Como explicou o Dr. Eduardo Barroso, o nosso especialis­ta em fígado, numa deambulaçã­o pela psique, falando de Bruno de Carvalho e o seu “burnout” (excesso de bílis na psique, julgo), o futebol é mais suave do que parece. Já não digo o mesmo do deus da bola, que lá de cima cria momentos inesperado­s e empolgante­s. Como o dos segundos finais do jogo do mais recente milagre de Cristiano Ronaldo, Real Madrid-Juventus. Mas coisas dessas dele são banais e é da bonita violência que junto a esse milagre aconteceu que quero falar.

Buffon, uma lenda à procura de um desiderato que, soube-se nesta semana, nunca atingirá (ser campeão na Champions), foi violento. A vinte segundos de ainda ter essa ilusão, ela morreu. O árbitro apitou penálti contra a sua Juventus. Era injusto, era justo, não interessa (era justo). O facto é que Buffon protestou, gritou e empurrou o árbitro. Todos as leis do futebol o proíbem. Mas, lá está, era futebol. E o futebol são lendas como Buffon, no último dia do seu sonho. Fosse o árbitro digno desse momento, ficaria com glória de ter sido agredido um bocadinho por Buffon, abraçaria o velho guarda-redes e com uma vénia convidá-lo-ia a ir para o seu posto pela derradeira vez. São tão bons os conflitos humanos que, apesar de tão emocionant­es, não nos deixam o amargo do irremediáv­el.

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