Diário de Notícias

”A CHINA SAIR-SE MAL SERIA UMA AMEAÇA PARA O MUNDO, PARA A PROSPERIDA­DE GLOBAL”

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Recordo-me de ver as imagens transmitid­as em direto pela BBC da partida de Chris Patten de Hong Kong, o último governador britânico do território, desde esse 1 de julho de 1997 reintegrad­o na China, a mãe pátria. Não foi, porém, a véspera de uma reforma dourada, pois Patten fez depois parte da Comissão Europeia e só não veio a liderá-la em 2004 porque foi vetado pelos franceses, abrindo espaço para o português Durão Barroso. Este homem, que há mais de uma década é reitor da Universida­de de Oxford, esteve ontem em Lisboa para uma conferênci­a na Fundação Oriente sob o mote d’A Europa e a Ordem Mundial em Mudança. Num discurso pontuado tanto pela erudição (Tucídides, Shakespear­e, Stefan Zweig) como pelo humor britânico (o parecer-lhe ter aterrado por erro em Manchester, tanta chuva caía de manhã em Lisboa). Com o DN, conversou sobre a guerra na Síria, a Rússia, a China, o brexit e ainda o fenómeno Trump. Já nesta semana, o DN publicou um artigo de opinião seu a dizer que o mundo está perigoso e falando de Donald Trump. É por causa do presidente americano ou há outras razões? Não penso que Donald Trump faça o mundo mais seguro, mas também não podemos pôr as culpas de tudo nele. Se olharmos para a situação no Médio Oriente existem múltiplas raízes para os atuais problemas: o fracasso em garantir um tratado entre israelitas e palestinia­nos, o ataque do 11 de Setembro às Torres Gémeas, o falhanço em desenvolve­r uma política que levasse a um acordo na Síria assim que a guerra começou, as feridas feitas pelos Estados Unidos ao acordo nuclear com o Irão, a recente decisão pelo presidente Trump de retirar as tropas da Síria, o envolvimen­to de Israel, a decisão do presidente Barack Obama em 2012-2013 de não manter a sua palavra no que diz respeito a uma linha vermelha na utilização de armas químicas. Tudo isto são razões que explicam a atual horrível confusão. É muito importante falar do papel da comunidade internacio­nal em desenhar uma linha vermelha no uso de armas químicas, porque a menos que o façamos arriscamo-nos a que comecem a ser utilizadas com crescente regularida­de por países em guerra. Acho que se podia traçar essa linha, até por causa do que está a acontecer na guerra civil na Síria. Nós no Ocidente deitámos fora a oportunida­de de produzir uma saída mais segura há alguns anos. Creio que para todos os efeitos o presidente Assad, com a ajuda da Rússia e do Irão, ganhou, mesmo que não me agrade dizer isto. Mas é verdade, e agora para se evitar que isso aconteça seria preciso um esforço militar muito maior por parte da América e dos seus aliados europeus e envolvendo não apenas poder aéreo como também tropas no terreno. E isso acho que não vai acontecer. Não há apoio político para tal. Por isso espero que haja apoio pelo menos para fazer algo de duro em relação às armas químicas. E depois espero que, tal como já devíamos ter feito há vários anos, tentemos desenvolve­r uma melhor relação com o Irão, no mínimo para termos alguma influência no que está a acontecer. Faz ligação entre esta preocupaçã­o em estabelece­r uma linha vermelha quanto às armas químicas e o envenename­nto recente do ex-espião Sergei Skripal no Reino Unido? Seria muito difícil para mim, como britânico, dado o apoio internacio­nal para a linha seguida pelo meu país, pensar que não devemos adotar uma linha dura sobre o uso de armas químicas na Síria. E se não duvido de que foram as forças armadas sírias que usaram essas armas, como aconteceu no ano passado e já tinha acontecido antes, os russos deveriam saber o que eles estavam a fazer, o que estavam a planear. Talvez os russos sejam indiretame­nte responsáve­is na Síria, mas são eles que mexem os cordelinho­s e têm de assumir alguma responsabi­lidade. No Reino Unido, é muito claro que foram eles os responsáve­is, de uma forma ou outra, até porque houve já, nos últimos anos, 14 mortes surpreende­ntes de russos críticos deVladimir Putin ou oligarcas que se atravessar­am no caminho do presidente, ou genericame­nte na mira da máfia russa. Mas acredita que esta tensão pós-Guerra Fria entre o Reino Unido, os Estados Unidos, o Ocidente em geral e a Rússia é a forma mais adequada de lidar ao protagonis­mo da Rússia de Putin? A mão pesada é a solução? Não creio que haja alternativ­a à mão pesada. Não são os europeus ocidentais ou os americanos que andam a envenenar pessoas na Rússia. Não foram os europeus ou os americanos que derrubaram o avião malaio ou que invadiram a Crimeia ou que estão por trás do conflito no leste da Ucrânia. São os russos. E atuam sempre na base da desonestid­ade e do que chamam de negação plausível. E de cada vez dão um argumento sempre mais improvável para que não possam ser acusados seja da invasão da Crimeia, seja da morte de Litvinenko, seja da tentativa de assassínio dos Skripal, pai e filha, e já ninguém acredita neles. Mas ainda há minutos, na palestra que deu na Fundação Oriente, disse não considerar a Rússia uma superpotên­cia, até porque a sua economia, como sublinhou, não é maior do que a da Itália. Assim, como se explica que Putin seja capaz de aparecer com o

grande xadrezista, capaz de colocar as peças sempre em posição de ataque? Não penso que Putin seja o mestre do xadrez, mas sim que tem sido muito destrutivo na forma como faz uso do seu peso, da sua influência mundo fora, e que temos sido fracos a lidar com essa forma de atuar da Rússia ao longo dos anos. É pena. E se não somos firmes a lidar com os russos, eles ousam um pouco mais, pressionam um pouco mais. Tive de lidar com o senhor Putin duas ou três vezes quando era comissário europeu: uma foi, depois do alargament­o da União Europeia (UE) a leste, o acesso a Kalininegr­ado; e a outra foi sobre a extensão aos novos membros da Europa de leste do acordo comercial que havia entre a UE e a Rússia. E nestes assuntos a Rússia foi muito dura, e mentiam. Foi preciso ser firme com eles. O presidente Putin ainda acredita numa Europa com esferas de influência. Não lhe interessa a independên­cia da Europa Central e Oriental. Acha que esses países devem estar ligados a Moscovo e a ninguém mais. Não me parece uma boa maneira de olhar para o mundo no século XXI. É possível ver em Putin continuida­de com o estalinism­o e a forma como foi controlado o leste europeu no pós-Segunda Guerra Mundial, ou na verdade, como alguns dizem, repôs lógicas que existiam no império czarista? A Rússia sempre foi uma mistura de autocracia e gangsteris­mo. Se olharmos para história da máfia russa ao longo dos anos, mesmo no tempo dos czares era usada pelo aparelho de Estado para ajudar a manter o regime no poder. E isso é certamente verdade hoje. Acho que o senhor Putin lamenta profundame­nte o colapso da União Soviética. Aliás, ele disse ter sido tal um dos grandes desastres do século XX. Enquanto para os países que ganharam a sua independên­cia da Rússia e para aqueles que no Ocidente viviam com medo dos mísseis o colapso da União Soviética só pode ter sido bom. Falemos de outro grande país, este sim a caminho de ser superpotên­cia. Nestes 21 anos que passaram desde que saiu de Hong Kong como o último governador britânico, a China tornou-se incomparav­elmente mais forte, a caminho de ser número um. Isso deu-se de uma forma positiva ou negativa para a ordem global? A China sair-se bem não é uma ameaça para o mundo. Mas a China sair-se mal seria uma ameaça para o mundo, para a prosperida­de global. Sou a favor de a China continuar a prosperar. Não defendo que prospere obedecendo a um conjunto de regras diferentes em relação a todos nós. É como se num jogo de futebol uma equipa tivesse de obedecer às regras do fora-de-jogo e a outra não. É grotescame­nte injusto. Temos sido muito maus na Europa, e a Europa, a América e o Japão a traçar um limite quanto a isso. Se falar com a Câmara do Comércio da UE em Pequim, ou as câmaras do comércio nacionais, todas têm uma lista enorme sobre as práticas injustas que se aplicam. E que não seriam permitidas nos nossos países. Por isso devíamos estar todos à procura de um terreno de jogo nivelado. Também temos de ser muito claros na nossa oposição quanto à China desenvolve­r um conjunto de bases armadas no mar da China do Sul. A China nega que esteja a acontecer, mas sabemos que está. Percebo o nervosismo dos vizinhos da China. A China por vezes argumenta com a história, dizendo não ter uma tradição de expansioni­smo. É verdade? Se olhar para a história da China verá a forma fria como o coração han do país se foi expandindo ao longo de séculos. Claro que a China é expansioni­sta. Por vezes tentou expandir-se e acabou a sangrar do nariz, como aconteceu no Vietname. Por vezes safou-se. Acho que devemos lidar com a China que existe. Mas não devíamos ter de o fazer com base numa leitura errada da história. Esta nova aliança entre Vietname e EUA é uma provocação à China ou consequênc­ia lógica da situação? É uma consequênc­ia lógica da forma como a China se comportou. O Vietname é um país interessan­te, embora não goste do seu sistema de governo. Mas visite oVietname e verá um país que vai ser uma potência económica no futuro. Ninguém no seu perfeito juízo compraria uma guerra com oVietname. Sobre o Reino Unido e o futuro da Europa. Sei que é um crítico do brexit, mas acredita numa relação positiva entre o Reino Unido e a UE no futuro? Espero que sim. Não vejo nenhuma alternativ­a. Qualquer alternativ­a seria um desastre para o Reino Unido. E seria má para a Europa. E acho que a maioria do governo gostaria de ver o Reino Unido numa coisa parecida – talvez não idêntica – com a posição norueguesa com a UE. Para mim isso seria tão bom como ser membro da UE e é melhor do que não ter qualquer acordo económico ou político com a UE. É simplesmen­te tentar cooperar numa base do quotidiano. Espero que corra bem. Mas tem sido um exemplo terrível de ferida autoinflig­ida. O brexit foi o pior que aconteceu ao Reino Unido durante a minha vida política. Brexit e a eleição de Trump: falamos do mesmo fenómeno populista? Acho que há elementos comuns. É uma questão de alienação política, económica e cultural que é relevante em ambos os países. Há uma verdadeira questão de política de identidade que ajuda a explicar ambos os resultados. E a política de identifica­ção é perigosa. E tem sido tornada mais perigosa pelas redes sociais. Mas continua otimista em relação à América como líder do mundo livre? Se a América não se voltar a afirmar nesse papel, todos vamos ficar pior. Acredito que há uma América muito melhor do que a que o senhor Trump representa. E mais cedo ou mais tarde espero que se volte a afirmar. A América que nos deu na Europa a liderança que nos ajudou a transforma­r o continente. Também tem opinião favorável de Emmanuel Macron e Angela Merkel. São os dois líderes na Europa hoje? Ambos são grandes personalid­ades políticas. E muito vai depender de Merkel ter sucesso com a sua nova administra­ção e se o senhor Macron consegue avançar com as reformas económicas que está a tentar implementa­r.

“Não penso que Putin seja o mestre do xadrez, mas sim que tem sido muito destrutivo na forma como faz uso do seu peso, da sua influência mundo fora e que temos sido fracos a lidar com essa forma de atuar da Rússia ao longo dos anos” “Acredito que há uma América muito melhor do que a que o senhor Trump representa. E mais cedo ou mais tarde espero que se volte a afirmar” “Ambos são grandes personalid­ades políticas. E muito vai depender de Merkel ter sucesso com a sua nova administra­ção e se o senhor Macron consegue avançar com as reformas económicas que está a tentar implementa­r”

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Chris Patten na Fundação Oriente com uma pintura de Lisboa como cenário
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