“É o vinho que leva os pontapés quando a Europa decide fazer alguma coisa”
Tal como para mim, a Cantina Zé Avillez é uma estreia para George Sandeman, representante da sétima geração da sua família à frente da Casa Sandeman. Mas a escolha do restaurante, a dobrar a esquina da Rua dos Arameiros ali a chegar ao Terreiro do Paço – e convenientemente perto de Santa Apolónia, onde há de apanhar o comboio de regresso ao Porto a meio da tarde –, foi pacífica. “O Avillez é sempre uma aposta segura porque ele pega na comida que é intrinsecamente portuguesa e torna-a mais moderna, sem lhe roubar a integridade.” Repara imediatamente nos diversos idiomas em que Avillez apresenta os pratos da casa numa sucessão de folhas presas à tábua, com separadores a indicar português, inglês, espanhol – “aqui se vê bem o impacto do turismo; o meu taxista dizia que já é difícil ouvir falar português aqui na Baixa”, entusiasma-se. E noto eu que quase parece propositado para o meu convidado, nascido de mãe andaluz e pai inglês, levado para viver no Porto ainda antes da maioridade.
Logo à chegada, negociou uma mesa à janela, por isso conseguimos manter alguma tranquilidade, apesar das muitas conversas que se cruzam na pequena sala da Cantina. E com ele, de sorriso franco e gesticular tão português nas enormes mãos sardentas e tipicamente britânicas, é fácil conversar. Pelo que, pedidas as iscas e o bacalhau lascado com grelos, crosta de broa e alheira e decidido o Dão que lhes dará mais sabor, engrenamos rapidamente na conversa precisamente pelo vinho. “Este Quinta dos Carvalhais, apesar de branco, liga muito bem. É uma casta típica do Dão este Encruzado, um vinho feito por uma enóloga, a Beatriz Cabral de Almeida, que envelhece muito bem e tem suficiente riqueza e estrutura para acompanhar qualquer prato.” Com uma ligação familiar de mais de 230 anos aos vinhos, George conhece profundamente este mundo, sente-se intimamente ligado ao ADN de Portugal e dos vinhos portugueses e reconhece uma evolução nos que daqui saem. “Os vinhos portugueses são cada vez mais reconhecidos lá fora, têm melhorado muito a imagem e tem sido feito imenso trabalho para chegar a esta qualidade. Países mais tradicionais, como Inglaterra, já contemplam os vinhos portugueses.” Diz que há poucos com a relação qualidade/preço que têm os nossos, mas encontra aqui uma considerável margem para fazer crescer os preços, sobretudo porque o país tem perdido algum volume nas exportações de gamas mais baixas mas conseguido aumentar e muito o valor das vendas ao exterior.
“O valor é o mais importante, no ano passado atingimos cerca de 780 milhões de euros em exportações de vinho, um aumento de 53 milhões relativamente ao ano anterior, o que é muito bom sinal. E o turismo tem dado um contributo importante: os turistas que vêm consomem e quando voltam a casa pensam em Portugal e nos nossos vinhos de outra forma. Porque o vinho é uma parte essencial da alma portuguesa.”
Quanto a ele, sente-se português em cada palavra dessa convicção, reconhecendo-se muito mais na herança da trisavó Carlota Morais Sarmento do que nos antepassados ingleses, escoceses ou até na mãe produtora de jerez da Andaluzia (casa Valdespino, fundada em 1430, uma das mais antigas produtoras do mundo). Ainda que goste muito de Espanha, onde vai frequentemente desde os 6 anos, e que tenha saudades “de ir a um pub, de beber uma cerveja inglesa e de estar à lareira enquanto chove lá fora, por mais voltas que dê à cabeça não havia outro sítio onde preferisse viver”. “Tenho uma irmã em Inglaterra e um irmão no País de Gales, tenho algum formalismo britânico, mas tenho um latino em mim que quer sair.” Ri-se. “A verdade é que não me sinto muito inglês.”
George Sandeman nasceu em Londres, mas desde criança manteve esta ligação com Portugal graças ao negócio de Porto da família paterna. Recorda com carinho como o país o impressionou quando entrou pela primeira vez no Douro, aos 15 anos: “O cenário era ainda um pouco rústico, nessa época, lembro-me de passarmos nas aldeias e virem os miúdos todos a correr para ver um carro.” Não sabia ainda que três anos mais tarde, em 1971, iria confrontar o pai, David, com as suas dúvidas sobre o futuro e que isso o levaria a deixar Londres para começar a criar raízes entre as vinhas da Régua. “Aos 18 anos, disse-lhe que talvez quisesse ir para a faculdade, que não tinha a certeza de que queria segui-lo nos vinhos. Foi a pior discussão que alguma vez tivemos. Nós éramos formatados numa idade muito jovem para entrar no negócio, entende? Penso que não foi retaliação, mas meses depois eu estava a estagiar na Régua.” Hoje com 65 anos, ri-se com a memória desse tempo, que acabou por desenhar-lhe a vida.
Aprovado e feito brinde com o Encruzado, que é de facto especial, o chairman da Sandeman (cargo em que sucedeu ao pai em 1991) vai-me relatando como se foi fazendo português através do vinho. Educado num colégio interno em Inglaterra, depois da aprendizagem na Régua, no Porto, e em Jerez voltou a Londres, em 1977, para integrar a Sandeman, e dali seguiu para Nova Iorque, onde passou uma década quando a empresa foi comprada em bolsa, passando a trabalhar vinhos internacionais até a empresa precisar de alguém para o Porto e entender que, pelo apelido coincidente com a marca, seria ele o melhor representante. Eram os anos 1990, ir do Porto ao Douro já não durava um dia inteiro e George encontrara no sangue essa marca lusitana, por isso foi com toda a naturalidade que os três anos que devia ficar se transformaram nos últimos 30 anos.
Casado com uma portuguesa, com cinco filhos entre os 40 e os 18 anos, nenhum ligado aos vinhos – o mais velho a viver em Miami, onde criou os Sandeman New Walking Tours, que já leva a 18 países, a segunda nos Estados Unidos e a terceira em Berlim –, diz que costuma partilhar as suas três máximas com as duas filhas que ainda vivem com ele no Porto: “Tempus fugit (o tempo voa), carpe diem (aproveite o dia) e cave canem (cuidado com o cão), que também é importante!” Conforme se entusiasma, o sotaque britânico que lhe salpica o português é invadido por um ou outro termo castelhano – ele corrige, “andaluz” – que lhe põe mais alegria no discurso.
A viagem é interrompida pelas iscas e o bacalhau, tão ricos de cara e aroma que decidimos partilhar ambos os pratos, para constatar que foram excelentes escolhas. George diz-me que há hoje mais gente nova, “enólogos a entrar, a fazer vinhos bons, diferentes e a criar algum ruído com valor”. Traça o retrato de um negócio que pede equilíbrio entre vinhos mais populares, “para quem não se quer concentrar muito mas beber algo agradável, que tem raiz, uma ligação à terra” e outros “mais complexos, mais íntegros, mais interessantes”. E diz que nisso Portugal tem uma vantagem enorme
“No ano passado, Portugal atingiu os 780 milhões de euros em exportações de vinho. O valor subiu 53 milhões em relação a 2016” “Aos 18 anos, disse ao meu pai que não tinha a certeza se queria segui-lo nos vinhos. Foi a pior discussão que alguma vez tivemos”
por ter tantas castas diferentes: “São mais de 240 castas nacionais, mais as importadas, que dão para fazer blends superinteressantes.” É essa riqueza de características típicas das diferentes regiões, “mas unidas por uma certa portugalidade”, que o impressiona e que nos tem valorizado.
“Aqui, uma pessoa senta-se à mesa e tem sempre vinho a acompanhar a comida, faz parte da dieta mediterrânica. Nos países europeus do norte é diferente, consome-se em períodos muito curtos. Mas o vinho dá muito prazer quando consumido adequadamente, é cultural, tem ligação à terra.” Quanto a ele, esses laços à marca e às suas raízes conseguiu mantê-los mesmo quando a Sandeman se profissionalizou e deixou de pertencer à família – hoje está no universo Sogrape, de que é administrador. “Foi sempre entendida a importância dessa ligação, pelo que mesmo quando a empresa foi mudando de mãos manteve a influência familiar.”
Também presidente da Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal (ACIBEV ), os engulhos do setor preocupam-no. Queixa-se, por exemplo, da tendência de taxar demasiado as bebidas alcoólicas para desincentivar o consumo por oposição a educar. Sublinha que apoia a decisão de ser proibido consumir bebidas alcoólicas com menos de 18 anos, “mesmo porque há evidências científicas que demonstram os seus efeitos”, mas acredita que não vem mal ao mundo – pelo contrário – se ainda antes desta idade e em ambiente controlado os pais forem educando, ensinando que se pode beber um copo de vinho de vez em quando.
“Já Platão dizia n’A República que a primeira responsabilidade dos governantes era educar, e isso começa cedo e tem de ser um processo contínuo, é preciso ir sempre abordando os desafios enormes que temos na vida. A liberdade e a disponibilidade trazem essa necessidade.” Entende que com o vinho se passa isso mesmo: “É importante aprender a beber no que respeita à quantidade, à moderação, mas também entender de onde vem o vinho, como é feito. E isso vai tornar a experiência diferente, mais interessante.”
Para George, “é melhor ter mais pessoas a consumir menos do que menos a beber mais”, mas, ao contrário do que os calvinistas sentem, “também não há pecado em ficar alegre de vez em quando, estar descontraído é bom”. Ainda assim, acredita que Portugal tem de ser cada vez mais uma marca de qualidade. “Não é só a dieta mediterrânica, é tudo o que é português, esta forma de desfrutar que existe nos países do sul da Europa tem de ser promovida, este estilo de vida. Porque é isso que os turistas procuram quando vêm: descontração, boa comida, um bom copo de vinho, uma caminhada.”
Porque nenhum de nós é de doces, passamos diretamente aos cafés, sem açúcar, como eu gosto e George se habituou a apreciar nos primeiros anos passados na Régua. Viramos a conversa para os desafios do setor. “Sempre que olhamos além do imediato, estamos a ver a evolução, as ameaças que temos pela frente, e das maiores que existem são as barreiras à importação impostas por países como a China ou os EUA. Tendencialmente, é o vinho que leva os pontapés quando a Europa decide fazer alguma coisa.” Exemplifica com a medida europeia antidumping na Organização Mundial do Comércio dirigida aos painéis solares chineses e a retaliação de Pequim com uma lei antidumping contra os vinhos europeus. “Não tinha nada que ver nem sequer havia dumping, mas foi preciso um enorme esforço para provar isso e negociar com a China para o vinho continuar a entrar.”
Apesar das dificuldades – essas e outras, incluindo o tamanho e o facto de se tratar de uma cultura imensamente distante e com o peso de largos séculos de história –, diz que a China é o mercado mais interessante a longo prazo, um mercado do futuro que tem vindo a mudar e a ganhar interesse no vinho. “Continua complicado nas regras, nas licenças, nos requisitos, nas taxas, nisso continua tão chinês como sempre, mas os consumidores chineses estão cada vez mais interessados em vinho e com a abordagem certa, imitando o estilo mediterrânico.” Numa perspetiva de médio prazo, é para os EUA que ajusta a mira, ainda que também aí haja desafios: “Cada Estado é um mercado, os hábitos mudam muito de uma cidade para outra.” É por isso que o preocupa que o setor possa vir a ser afetado por uma contramedida europeia de reação a tarifas sobre alumínio e aço. “Pela primeira vez entre Europa e EUA houve ameaças de represálias que incluíam o whiskey americano... Estamos completamente contra isso, porque a seguir viriam eles contra os nossos vinhos, numa altura em que o vinho português está a ganhar relevo ali.” Também reconhece valor nas exportações para o Brasil, mas é um negócio “complexo”, porque está a melhorar a produção própria e tem tradição na criação de regras protecionistas. Um efeito que poderá ser atenuado com o free trade agreement que está em negociação com o Mercosul – “seria excelente para Portugal”.
Quanto a desafios internos, reconhece na água e no aumento da nossa capacidade de armazenamento uma prioridade, mas aponta a outro objetivo ainda mais relevante: ter vinhas adequadas ao crescimento que temos tido. “O crescimento tem de ser feito com consistência e cuidado, não pode ser repentino, sob pena de fazer subir muito depressa os preços. Se o custo aumenta de repente, isso vai afetar o preço de venda e a procura pode cair.” Ou seja, há espaço para subir preços mas é preciso ser um movimento cadenciado e suportado até que reflita a real qualidade do vinho, o que ainda não acontece. “Portanto, temos de ter suficiente vinha para evitar que fique demasiado caro demasiado depressa.”
Há ainda outra prioridade: o acesso ao mercado e a criação de notoriedade em que há concorrência e ruído crescentes, mas esse trabalho está a ser feito. “A Wines of Portugal tem feito esse caminho muito bem e levado os nossos vinhos para fora de forma a criar buzz, a despertar curiosidade que leva os estrangeiros a procurar mais, a descobrir por si as regiões, as castas, as diferenças culturais, a gastronomia. Portugal está na moda, temos de aproveitar.”
Já com os segundos cafés à frente, confessa que gosta de provar vinhos mas não é nada formal em relação a isso. “Para mim, o vinho é bom se o consumidor gosta dele, se não, não é. Antigamente falava-se na barreira de sabor, dizia-se que as pessoas com maturidade e experiência a ultrapassavam com o tempo e aprendiam a apreciar certos vinhos, mas essa exigência já não existe, já é aceitável que se prefira vinhos mais simples.”
Antes de o deixar apanhar o comboio de regresso ao Porto, pergunto-lhe sobre projetos pessoais. Adepto de caminhadas, diz-me que está a treinar para cumprir um sonho antigo: “Vou tentar fazer o Caminho de Santiago em 2020.” De resto, tem um mais urgente: tentar a dupla nacionalidade, para que a vida não se lhe complique quando “a grande borrada” que foi o brexit se concretizar. “O modelo da Europa é importantíssimo para sobreviver a estes tempos. Pode dizer-se que entraram muitos países demasiado depressa, mas é essencial termos uma Europa una, mantendo o respeito pelas diferentes culturas e nações.”