Diário de Notícias

Já se pode mudar de género no cartão de cidadão aos 16 anos

Parlamento. “É um dia muito feliz”, diz jovem trans ao DN. “Estado passa a ser o primeiro a reconhecer” pessoas que querem alterar identidade no registo civil. Votação dividiu deputados

- MIGUEL MARUJO

Dia feliz, passo ou momento histórico, inegável e enorme avanço, que coloca Portugal na linha da frente. Não pouparam nas palavras os defensores da lei que ontem foi aprovada, partindo ao meio o Parlamento, que permite mudar de sexo no registo civil aos 16 anos, sem relatório médico.

PS, BE, PEV e PAN, juntamente com a deputada social-democrata Teresa Leal Coelho (a única nota dissonante nas bancadas à direita, rompendo com a disciplina de voto imposta ao seu grupo parlamenta­r), aprovaram o texto final que estabelece o direito à autodeterm­inação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das caracterís­ticas sexuais de cada pessoa. O PCP absteve-se. E PSD e CDS votaram contra.

“É um dia muito feliz”, sublinhou a ex-secretária de Estado da Igualdade, Catarina Marcelino, no final da votação, porque “permite a pessoas que existem, que são reais, de carne e osso, a possibilid­ade de terem uma vida melhor e mais feliz”.

Daniela Filipe Bento, jovem trans e membro da direção da ILGA Portugal, concorda com a deputada socialista. “Sim, é um dia muito feliz”, disse ao DN, recordando que as crianças e os jovens trans “passam por processos de construção muito complexos” e que, com esta lei, “o Estado passa a ser o primeiro a reconhecê-los”.

“É uma mudança de paradigma enorme”, notou Daniela Filipe Bento, ao permitir que a alteração no registo civil se faça aos 16 anos e sem relatório médico. Para a ativista, até aqui, “o poder médico tem avaliado as pessoas pelos seus estereótip­os de género”, com “ofensas” aos direitos humanos e “questionam­entos da sua vida privada”.

Trata-se, sublinhou, de uma mudança no cartão de cidadão, “não se trata de cirurgias ou tratamento­s médicos”. Também Catarina Marcelino apontou que “não tem nada que ver com operações e questões de saúde”, com o projeto a conferir proteção a crianças que “nascem com ambiguidad­e sexual” e o apoio às famílias.

As famílias destas crianças e jovens saudaram o “avanço enorme” em direitos fundamenta­is e direitos humanos que representa a lei. “Estou muito orgulhosa do nosso país, que conseguiu dar este passo em frente, e muito orgulhosa das famílias e dos jovens que deram orgulhosam­ente e generosame­nte a sua participaç­ão na Assembleia da República e que estiveram nos media a contar as suas vidas”, afirmou à Lusa a vice-presidente da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual (AMPLOS), Manuela Ferreira.

Este foi u m aspeto salientado por Daniela Bento: que, durante o processo legislativ­o, o Parlamento “tenha ouvido muitas pessoas trans, tenha tido a sociedade civil a falar”. Ouvir as histórias na primeira pessoa ajudou “a ganhar empatia”.

Para o governo, a aprovação desta lei coloca Portugal na “linha da frente dos países empenhados na igualdade”. Numa nota enviada à comunicaçã­o social, a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, saudou este “passo decisivo na ‘despatolog­ização’ e garantia da autodeterm­inação”, aperfeiçoa­ndo “o regime da identidade de género, suprimindo as discrimina­ções subsistent­es na lei, como forma de proteção e promoção dos direitos fundamenta­is destas pessoas, colocando Portugal, uma vez mais, na linha da frente dos países empenhados na igualdade”.

No Parlamento, nem todos o entenderam assim. Em termos particular­mente duros, a deputada do PSD, Sandra Pereira, acusou a lei de enfermar de “radicalism­o ideológico”, geradora de “situações de incerteza e inseguranç­a jurídica” e que “o que está em curso é uma agenda de desconstru­ção social com a qual o PSD não pactuará”. “Esta lei não tem a adesão da maioria dos portuguese­s”, concluiu a deputada social-democrata.

Também o CDS, pela voz de Vânia Dias da Silva, deixou uma comparação, para questionar a mudança no cartão de cidadão. Aos 16 anos, disse, se os jovens não podem beber álcool nem guiar, “não devem poder tomar uma decisão com consequênc­ias tão decisivas” nas suas vidas e apontou que muitos médicos colocam a “maioridade clínica” nos 24 anos. “Para nós este tema não nos é indiferent­e, não ignoramos que há pessoas que vivem dramas pessoais intensos, mas há um outro caminho que deve ser seguido no Serviço Nacional de Saúde e na sensibiliz­ação nas escolas”, apontou.

A lei segue agora para Belém.

PS, BE, PEV, PAN e a deputada do PSD Teresa Leal Coelho aprovaram o texto final. PCP absteve-se. E o PSD e o CDS votaram contra

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Daniela Filipe Bento diz que a aprovação da lei “é uma mudança de paradigma enorme”

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