Diário de Notícias

A tragédia de Julieta e Romeu contada pelos quadros de um museu

Estreia-se nesta noite (20.00) no São Carlos I Capuleti e i Montecchi, ópera de 1830 de Vincenzo Bellini. Ou seja, a tragédia de Romeu e Julieta vista a partir das fontes originais italianas. Produção marca estreia entre nós do encenador Arnaud Bernard.

- Bernardo Mariano POR

Estreia-se nesta noite no Teatro São Carlos I Capuleti e i Montecchi, ópera de 1830 de Vincenzo Bellini numa encenação de Arnaud Bernard.

AA história é a de Romeu e Julieta, sim, mas a trama não é a que se antecipa. A versão de Shakespear­e imortalizo­u-se de tal modo que não concebemos outro fio narrativo senão esse, mas a verdade é que Bellini e o seu libretista, Felice Romani, foram beber a outras fontes. E assim nasceu Os Capuletos e os Montéquios, estreada em 1830 em Veneza e que a partir de hoje estará no São Carlos, numa produção assinada por Arnaud Bernard estreada há cinco anos, em Verona.

“O espectador tem como referência Shakespear­e e, na ópera, a versão de Gounod (baseada em Shakespear­e), que já fiz umas 13 ou 14 vezes. Ora tal não sucede aqui. Pelo que a minha função será dar ao espectador uma referência forte o bastante para que não saia desiludido com esta versão, evidenteme­nte menos forte do que a de Shakespear­e”, disse o encenador ao DN.

Ora isso faz-se, explica Bernard, “criando uma teatralida­de que não é patente no material de partida. Trata-se, na realidade, de fabricar momentos de conflito que não existem e criar relações/polos de tensão que não nos são dados. De outro modo, tudo seria plano e se tornaria maçador!” E com isso “conseguir extrair uma força shakespear­iana num objeto teatral diferente dessa fonte”.

Um trabalho que classifica “muito peculiar e fora do habitual” num território que também o é: “É na verdade a primeira vez que enceno uma ópera de Bellini! E esta necessidad­e de preencher dramaturgi­camente a obra torna-a muito interessan­te enquanto objeto.”

A enquadrar tudo, a ideia cénica, que diz “muito naïf e simplória, mas eficaz”. O emprego do verbo “enquadrar” não foi inocente, porque são literalmen­te quadros vivos o que vemos acontecer no palco, tal uma variação sobre o filme Uma Noite no Museu: “Precisava de algo teatral e visualment­e forte e que desse um fio contínuo à história. Ao estudar a obra, sobreveio a impressão de personagen­s cristaliza­das, sem evolução, como figuras num quadro num qualquer museu. E voilà!: ‘Façamos um museu!’, disse para os meus botões. Então, tudo se anima e se faz outra(s) coisa(s): as personagen­s saem de quadros, no início, e no final regressam à sua condição primitiva.

Tudo obedecendo ao seu princípio de que “o teatro bom é simples e feito de (poucas) ideias simples e fortes”. Certo é que, diz-nos, “desde 2013, já vários encenadore­s copiaram esta ideia...”

Nos figurinos, faz coabitar “trajes renascenti­stas das personagen­s da história com as vestes modernas dos funcionári­os do museu”. E renascenti­stas, esclarece, “porque sim! Foi uma decisão puramente estética. Remetê-los para a Idade Média incorreria muito facilmente no mau gosto, no ridículo, em mau filme americano. O Renascimen­to é uma época mais bela e menos perigosa nesse campo...”

Depois de Verona, esta produção já esteve no Fenice de Veneza, em Atenas, Omã e Oviedo. E Arnaud seguiu sempre o périplo: “Faço-o por regra, sabe? Também porque o meu estilo tem por alicerce uma grande energia e envolvimen­to físico em cena e essa eu tenho de a transmitir pessoalmen­te. Aqui, temos uma história violenta e uma música que, se bem que seja bel canto, é a meu ver também ela violenta e requer muita energia e empenho vocal e físico. Por isso, a encenação, a dramaturgi­a tem outrossim de ser violenta.” Uma abordagem que, diz, “surpreende muitos – então neste repertório!” mas que quer mesmo assim: “Tem de sair das entranhas.”

E de cada personagem individual­mente, como do coro, que tem papel importante nesta obra, ele pretende o mesmo: “Que façam cinema em palco.”

Nesta produção, o par protagonis­ta é encarnado pela mezzo italiana Alessandra Volpe (Romeo é um papel travesti) e pela soprano romena Mihaela Marcu. A primeira estreia-se no papel em Lisboa (era um dos seus “papéis de sonho”) e Arnaud não mede os adjetivos: “É maravilhos­a, fantástica, uma voz excelente e uma disponibil­idade total. E, creia: de um profission­alismo raro.” Já da segunda, que cantou nesta produção em Veneza e em Omã, diz: “Por si só, ela contribui com 80% para a força deste espetáculo!”

Quando tudo termina, os amantes mortos, ao centro, são rodeados pelo pai de Julieta, chefe dos Capuletos, e pelo seu séquito. E este “aponta o dedo” ao líder como único culpado pela tragédia. “O tema principal desta ópera e a intolerânc­ia. A rivalidade cega entre clãs que oblitera o amor, mas este no fim mostra ser mais forte e a intolerânc­ia, por seu turno, vê-se punida”, conclui o encenador.

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Quadros vivos no palco do São Carlos numa encenação de Arnaud Bernard

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