Diário de Notícias

George Dutton “O padre vietnamita Binh é um exemplo da globalizaç­ão antes do tempo”

- ABEL COELHO DE MORAIS

Um padre vietnamita diz missa na Baixa lisboeta no início do século XIX. Chama-se Philipe Binh e o ano é 1807. Binh (1759-1833), chegara a Portugal em 1796, e aqui permaneceu até à morte. Em entrevista ao DN, George Dutton, autor de A Vietnamese Moses (Um Moisés Vietnamita), obra distinguid­a com o prémio de investigaç­ão histórica da Fundação Oriente em 2017, explica quem foi este vietnamita jesuíta, ordenado padre em 1793, e as razões que o trouxeram até Lisboa. Quem foi Philipe Binh, também conhecido como Felipe do Rosário? O primeiro aspeto a realçar, e isso para mim é absolutame­nte claro após ter lido os seus cadernos, é que era uma pessoa extremamen­te determinad­a, ao ponto da obstinação, e persistent­e. Vê-se isso na forma como prosseguiu a sua missão em Portugal, que era a de convencer o rei D. João VI a nomear um bispo para a sua comunidade em Tonkin [norte do Vietname]. Foi incansável nesse esforço. Mesmo quando o rei parte para o Brasil, por causa das invasões francesas, procurou formas de viajar para lá. Mas isso é já em 1807, e Binh chegara uma década antes... A primeira década é a época mais ativa dos seus esforços. E por um período de três semanas teve sucesso. D. JoãoVI nomeou um bispo. Mas voltou atrás. Porquê? Porque entendeu que não havia qualquer vantagem para ele e para Portugal em antagoniza­r o Vaticano. Por isso, foi revogada a nomeação, que podia ser feita no âmbito das prerrogati­vas do Padroado português no Oriente, e o bispo que devia ser para Tonkin foi para Macau. No momento em que o Vaticano levantou objeções, o rei recuou, o que nos mostra os limites do seu investimen­to na questão. Porquê Um Moisés Vietnamita? Quando Binh partiu, deixou um aviso à sua comunidade para nunca ceder nem transigir nos princípios da fé ou aceitarem os vigários apostólico­s nomeados após a dissolução da Sociedade de Jesus. E retoma a analogia bíblica com Moisés, quando este subiu à montanha do Sinai para receber os Dez Mandamento­s e avisou o seu povo para não regressar aos antigos rituais, e não foi ouvido. Assim, Binh vê-se como uma espécie de Moisés e nas cartas que envia para o Vietname reitera constantem­ente a necessidad­e de a sua comunidade manter o espírito de fidelidade inicial. A chegada do grupo do padre Binh teve um certo impacto inicial e ele soube tirar partido disso... É óbvio que o padre Binh tornou o mais exótica possível a aparência do grupo, o ser provenient­e do longínquoV­ietname era o seu grande trunfo e com isso conseguiu atrair a atenção do rei. D. João VI que dava importânci­a à ideia de mostrar a sua corte e os seus domínios como diferentes, variados, globais, dir-se-ia hoje. Isso vê-se por este detalhe: embora tenha dado autorizaçã­o para Binh e o seu grupo se vestirem à europeia, insistiu sempre que nas audiências na corte se apresentas­sem com os trajes vietnamita­s.

Consideran­do isso, podemos olhar para Binh como exemplo da globalizaç­ão antes de o conceito ser cunhado? Gostaria de pensar que sim. O padre Binh é exemplo de globalizaç­ão antes do tempo. Lisboa era então uma cidade multicultu­ral e global, influencia­da por pessoas que chegavam de quase todo o mundo para a visitar ou aqui viver. Binh é exemplo dessa dinâmica. E o catolicism­o tem um papel importante no processo de Binh. É o catolicism­o que dá a dimensão, a compreensã­o e uma visão do mundo global aos vietnamita­s. Tornou-os parte de uma realidade maior, que transcendi­a as referência­s tradiciona­is do Vietname e da Ásia. Mas não deixa de ser extraordin­ário haver um padre vietnamita a dizer missa numa das igrejas da Baixa lisboeta no início do século XIX? Binh chega a Lisboa com um certo grau de fluência no português. Teve uma boa formação, como seria de esperar dos jesuítas, possivelme­nte em português e também em latim. Por exemplo, ele nunca menciona a presença de tradutores nos encontros que tem com o rei ou com outras pessoas. E, claro, com a passagem do tempo, o seu português só tenderia a melhorar. E integrou-se perfeitame­nte no meio clerical português, cortou o cabelo e passou a usar a sotaina como os padres portuguese­s. Só uma coisa que não consegui encontrar foi descrições lisboetas dos padres vietnamita­s a dizerem missa, mas Binh refere-se a isso com frequência nos seus escritos. Por exemplo, consultei mais de oito mil páginas dos arquivos dos Oratoriano­s, que estão agora na Torre do Tombo, e só encontrei uma carta da corte a referir-se a Binh e, mais tarde, quando D. João VI volta atrás na nomeação do bispo para Tonkin, há uma publicação de 1801 que critica a decisão do rei, sendo evidente que tem fonte a delegação vietnamita. Refere no livro que, em média, a partir de 1807, Binh realiza 135 missas/ano? Sim, Binh era muito rigoroso e registava tudo o que ia sucedendo. Sobre as bases da conversão de Binh, o que é que podia atrair um vietnamita para o catolicism­o na segunda metade do século XVIII? Os maiores sucessos dos missionári­os católicos no norte do Vietname foram em zonas pobres e costeiras, o que se explica pelos meios de transporte empregues, navios, e por ser mais difícil viajar para o interior. O sucesso junto das populações pobres explica-se no quadro da sociedade vietnamita, muito influencia­da pelo confucioni­smo e profundame­nte hierarquiz­ada, em que aquelas populações eram marginaliz­adas, e pelo apelo relativame­nte igualitári­o do catolicism­o. Pensando nessa realidade, podemos olhar para Binh e para a sua comunidade como aquilo que o Papa Francisco, também jesuíta, classifica hoje como as “margens”, no sentido em que Binh poderia não estar ciente da dinâmica e dos interesses do Vaticano e equilíbrio­s entre o poder temporal e o poder espiritual como se viu no caso do bispo para Tonkin? Num certo sentido, Binh pode ser visto como alguém das “margens” mas não creio que quisesse ser visto assim. Sentia-se parte da comunidade global que é o catolicism­o e sentia que tinha o direito a colocar as exigências que colocava. Refere no livro que dois seminarist­as vietnamita­s, a estudarem com os jesuítas, mudaram os nomes para palavras que significam “lealdade” e “humanidade”, que são também conceitos centrais do confucioni­smo. Encontrou alguma forma de intersecçã­o entre o catolicism­o e o confucioni­smo? Há, sem dúvida, um vocabulári­o partilhado e algumas ideias que podemos considerar comuns. Mas há a questão da transmissã­o de uma religião para uma sociedade diferente e aí a dúvida é se usamos os mesmos termos ou se vamos à procura de uma terminolog­ia presente na sociedade a que se está a chegar e vamos reinterpre­tá-la para a nova mensagem. Não há dúvida de que muita da atividade missionári­a passou pelo estudo das realidades sociais locais e pela sua compreensã­o. Binh foi particular­mente leal aos jesuítas? De uma forma muito profunda. E isso prova-se pelos escritos hagiográfi­cos que dedicou às suas principais figuras na fase final da vida. Para Binh, ele próprio e os asiáticos tinham uma enorme dívida para com os jesuítas. Qual a impressão com que Binh fica de Lisboa? As suas descrições são simples, diretas, objetivas. Ele não faz comentário­s críticos comparativ­os. As suas descrições de Portugal têm como público a sua comunidade noVietname para quem está a escrever, a antever um dia em que, possivelme­nte, outros venham visitar Lisboa e está a prepará-los para evitarem um choque cultural, tornando a cidade e os costumes compreensí­veis para os seus compatriot­as. Que continuam hoje a viver de forma muito semelhante àquela em que viviam quando Binh partiu para a Europa, em pequenas casas de madeira, rodeadas de arrozais e campos de tabaco. Binh tinha-se mudado há pouco para a casa dos Oratoriano­s no Chiado quando se dá a primeira invasão francesa. Como é que ele viveu a situação? Viu-a como um sintoma do declínio de Portugal? Mais uma vez, as suas descrições são factuais. Não interpreta a invasão como efeito de um declínio de Portugal. Só descreve o que se viveu então na cidade. Apenas estabelece um paralelo entre Napoleão e um general vietnamita que invadiu a região onde Binh viveu no início do último quartel do século XVIII, e isto com o propósito de tornar claro para os seus compatriot­as quem era o francês.

“O padre Binh era uma pessoa extremamen­te determinad­a, ao ponto da obstinação, e persistent­e” “O ser provenient­e do longínquo Vietname era o seu grande trunfo e com isso conseguiu atrair a atenção do rei D.João VI” “Lisboa era então uma cidade multicultu­ral e global, influencia­da por pessoas que chegavam de quase todo o mundo para a visitar ou aqui viver. Binh é um belo exemplo dessa dinâmica”

 ??  ?? O autor de A Vietnamese Moses junto da fachada da antiga casa dos Oratoriano­s, no Chiado, onde Binh viveu desde 1807 até à morte
O autor de A Vietnamese Moses junto da fachada da antiga casa dos Oratoriano­s, no Chiado, onde Binh viveu desde 1807 até à morte
 ??  ?? A Vienamese Moses
George E. Dutton University of California Press 39,64 euro
A Vienamese Moses George E. Dutton University of California Press 39,64 euro

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal