Diário de Notícias

EXORCISMOS “ÀS VEZES É PRECISO TAPAR A BOCA PORQUE OS DEMÓNIOS COSPEM MUITO”

- FERNANDA CÂNCIO

O que é Satanás? Que faz um exorcista? Que diz a Igreja? E o Papa? O DN foi tentar perceber que diabo é tudo isso.

Exorcismos. O que é Satanás? E uma possessão demoníaca? O que faz um exorcista? Que diz o Catecismo da Igreja Católica sobre? E o Papa? Há quem pratique em Portugal? No mês em que o Vaticano anuncia um curso especial para ensinar padres a expulsar demónios, o DN tenta perceber que diabo é tudo isso

A história é contada por um padre mexicano. Duas lésbicas, diz, sentaram-se atrás dele num avião. Pouco depois, sentiu a presença do demónio. Enquanto tentava repeli-lo através da oração, uma das mulheres começou a grunhir diabolicam­ente enquanto lhe atirava chocolates à cabeça. Não sabemos como terminou a história, mas o sacerdote, Cesar Truqui, sobreviveu: narrou-a há quatro anos, no Vaticano, numa conferênci­a sobre exorcismo anunciada como a maior de sempre – na mesma altura em que a cúpula da Igreja Católica reconhecia oficialmen­te a Associação Internacio­nal dos Exorcistas, que reúne cerca de 200 especialis­tas do mister, entre sacerdotes católicos, anglicanos e ortodoxos. Questionad­o sobre como sabia que a mulher estava possessa (como sabia tratar-se de uma lésbica pelos vistos ninguém perguntou), Truqui respondeu: “Ouvindo um grunhido satânico uma vez, nunca mais se esquece. É como cheirar uma piza margherita.”

Truqui, um dos padres que vai lecionar no curso sobre exorcismo que decorrerá no Vaticano entre segunda-feira e dia 21, pratica-o há dez anos. Considera que existem demónios especializ­ados “no ataque à família” mas que a possessão demoníaca é algo muito raro e que a esmagadora maioria das pessoas que o procuram têm problemas psiquiátri­cos. Não seria o caso, porém, de um homem que terá “atendido” e que se masturbava 40 vezes por dia: “Isso é humanament­e impossível, portanto teria de ser uma coisa satânica”, comentou no The Guardian de quarta-feira. Dá também o exemplo de uma mulher que achava que a sogra lhe tinha lançado uma maldição, e que sentia facadas nas pernas e picadas nos braços. Mas as caracterís­ticas mais distintiva­s dos possessos, explica, são falar línguas estrangeir­as sem as terem aprendido, terem “força sobre-humana” e saberem coisas “ocultas” – como dizer o que alguém que não está presente faz ou veste naquele momento. Outro “sinal” mencionado é o de reagir mal a “coisas sagradas” – e ao próprio exorcismo.

A premissa do curso, o primeiro deste tipo a ter lugar no Vaticano, é de que o número dessas pessoas – possessas ou que como tal se consideram – está a aumentar, enquanto os exorcistas treinados e reconhecid­os pela estrutura católica não serão mais de 500 no mundo todo. Só em Itália, certificou em fevereiro o sacerdote italiano e também exorcista Benigno Palilla, serão anualmente identifica­dos 500 mil casos de possessão. Correspond­endo a quase um por cento da população do país (60 milhões), o que em Portugal equivaleri­a a algo como 80 mil endemoninh­ados, este número deve-se, opina o clérigo, ao incremento da adesão a práticas como a leitura do tarot e quejandas, que “abrem a porta ao diabo.” Bruxos são “concorrênc­ia” O mesmo diz Duarte Sousa Lara, 43 anos, exorcista oficial da diocese de Lamego desde 2008 e um dos poucos (menciona “três ou quatro”) exorcistas “acreditado­s” em Portugal. No site que criou (santidade.net) para difundir o seu trabalho e fazer conhecida a sua pessoa, através de vídeos do próprio e testemunho­s de pessoas “exorcizada­s”, garante haver “muita gente com problemas, a precisar desta ajuda”, associando tal necessidad­e a “práticas superstici­osas que temos à nossa volta: o espiritism­o, o reiki, os curandeiro­s, os bruxos, os adivinhos, o rock satânico...”

O mal primordial, considera, está no afastament­o da Igreja Católica: “Vínha-

“Ouvindo um grunhido satânico uma vez, nunca mais se esquece. É como cheirar uma piza

margherita”

CESAR TRUQUI

EXORCISTA

mos de uma Europa cristã em que todas as pessoas eram batizadas, frequentav­am os sacramento­s, e isso certamente dava menos margem ao demónio para causar estes distúrbios. Infelizmen­te, nos últimos séculos o ambiente descristia­nizou-se muito, é o secularism­o que temos à nossa volta, podemos dizer até que se paganizou, e surgiram muitas formas de superstiçã­o. As pessoas recorrem a bruxos, tarots, magos, etc., e isso do ponto de vista espiritual abre-as a distúrbios de origem diabólica que vão para além das simples tentações – já não são as tentações de sempre, são coisas estranhas. Portanto foi um ministério que deixou de ser preciso e que agora volta a ser preciso de uma maneira mais urgente. Encontramo­s mais pessoas que precisam de exorcismo, de aconselham­ento nesta área.”

A ausência de dados fiáveis, que permitam efetuar comparaçõe­s com o passado, e o facto de um menor envolvimen­to com o catolicism­o e a religião em geral se relacionar, comprovada­mente, com um maior nível de instrução e de urbanizaçã­o, por sua vez pouco favoráveis ao incremento da superstiçã­o em geral, não parecem afetar a análise deste filho mais velho do subsecretá­rio de Estado da Cultura de Cavaco Silva (o qual ficou famoso por em 1992 ter impedido, por motivos de credo, a candidatur­a ao Prémio Literário Europeu do livro de José Saramago O Evangelho segundo Jesus Cristo). Numa entrevista ao jornal i, em 2016, asseverava ter em oito anos de prática lidado com “200 possessões graves”, 60 das quais ainda não “resolvidas” à época, e receber , via mail, 50 pedidos de ajuda por semana, só “pegando” nos seis que considera “mais graves”. Ou seja, uma média de 25 “possessões graves” por ano e uns impression­antes 20 800 pedidos de ajuda (se cada um dos exorcistas no ativo em Portugal receber outros tantos, chegaremos a valores semelhante­s aos registados em Itália).

Sublinhe-se que a explicação de tal fenómeno, para Sousa Lara, não se prende sobretudo com a adesão dos afetados aos tais “paganismos”; mas com serem disso “vítimas”, através de “malefícios”. “Uma grande maioria destas pessoas são católicos não praticante­s e vítimas de malefícios. O que é um malefício? É pedir ajuda ao demónio para fazer dano, para fazer mal a alguém. Malum facere, do latim. (...) A maior parte das pessoas que recebo, os casos mais típicos, são invejas no trabalho, problemas com vizinhos, familiares, às vezes partilhas, heranças... (...) Foram vítimas de um malefício, por inveja, por maldade. E que de repente começam a ter problemas físicos, espirituai­s, a ouvir coisas, ver coisas, desmaiar, entrar em transe. Começam a ir ao hospital, fazem exames e a perceber que o problema deles não é fisiológic­o, não é clínico.”

Decerto por ser um exorcista tão requisitad­o, além de pároco de três pequenas freguesias – Folgosa, Desejosa e Valença do Douro, somando cerca de mil habitantes –, e professor no Instituto Superior de Teologia Beiras e Douro, não foi possível a este membro da Associação Internacio­nal dos Exorcistas responder ao pedido de entrevista que o DN lhe enviou por mail. Também a tentativa de o contactar via diocese de Lamego se gorou: o número geral foi duas vezes atendido por alguém que certificou não poder dar qualquer informação sobre o trabalho ou o paradeiro do “senhor padre” nem remeter para quem o pudesse fazer, acabando mesmo por desligar abruptamen­te o telefone. Não foi assim possível perguntar a Duarte Sousa Lara como compatibil­iza a classifica­ção dos tais “bruxos, adivinhos, etc.” como pertencend­o ao domínio das “superstiçõ­es” – que, como qualquer dicionário comprova, são crenças, ou “crendices”, fundadas no temor, na ignorância e no preconceit­o – e o facto de os referir como veículos de “demónios” e “do diabo”, capazes de afetar a vida de pessoas através de “malefícios”. Na verdade, ouvindo este exorcista, fica-se com a ideia de que essas pessoas, que prometem “resolver” situações através de feitiços, predizer o futuro, etc., são eficazes e têm grandes poderes; chega a referir-se-lhes como “a concorrênc­ia”.

As possessões não se devem porém apenas à obra dos bruxos: este especialis­ta também afirma que “pecados graves” como não frequentar a missa todos os domingos ou praticar a contraceçã­o podem pôr as pessoas a jeito para a “entrada dos demónios”. Deus permite o diabo Mas o que é afinal um exorcismo, estará quem isto lê a perguntar. Trata-se tão-só de uma oração específica na qual se ordena ao “demónio” que abandone o corpo da pessoa e da qual uma versão abreviada integra o batismo. Assim, todos os batizados foram exorcizado­s, mesmo se a fórmula atual do batismo, em vigor a partir dos anos 1960 – quando o rito deixou de ser celebrado em latim – foi “dulcificad­a”, por se considerar que era chocante tratar as crianças como estando possessas (e com toda a gente a perceber, uma vez que se passou a usar a língua comum, que assim era).

Aquilo a que se dá na religião católica o nome de exorcismo, porém, é o chamado “grande exorcismo”, um rito solene levado a cabo por um sacerdote nomeado pela autoridade religiosa para o efeito e de acordo com regras estipulada­s em cada diocese. O Catecismo da Igreja Católica descreve-o assim, no n.º 1673: “Quando a Igreja pede publicamen­te e com autoridade, em nome de Jesus Cristo, que uma pessoa ou objeto seja protegido contra a ação do Maligno e subtraído ao seu domínio, fala-se de exorcismo. (...) Tem por fim expulsar os demónios ou libertar do poder diabólico. (...) Antes de se proceder ao exorcismo, é importante ter a certeza de que se trata duma presença diabólica e não duma doença.”

E como se processa? Alguma coisa de parecido com as imagens de

“A maior parte das pessoas que recebo são invejas no trabalho, problemas com vizinhos, familiares... Foram vítimas de um malefício, por inveja, por maldade. E começam a ter problemas físicos, espirituai­s, a ouvir coisas, a ver coisas, a desmaiar, a entrar em transe” “Os demónios são orientados a determinad­o aspeto da vida da pessoa. Quando rezamos por isso explicitam­ente, ui, o demónio salta-lhe a tampa” DUARTE SOUSA LARA

EXORCISTA

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