Diário de Notícias

António Fontes “É muito fácil um game over...”

- JOÃO PEDRO HENRIQUES

Ao amanhecer do dia 26 de março, algures no Pacífico Sul entre a Nova Zelândia e o cabo Horn, caiu ao mar o velejador britânico John Fisher (Fish, para os amigos), tripulante da equipa Scallywag, uma das sete concorrent­es da Volvo Ocean Race. Horas depois de intensas buscas a equipa deu-o como desapareci­do. A bordo seguia o velejador português António Fontes, que agora conta ao DN as circunstân­cias do acidente e como ele próprio e a equipa lhe reagiu. Sim, já havia luz... Estava no convés? Não, estava a vestir-me, ia entrar de quarto. Quem estava era o John Fisher, a Annemieke Bes e o Ben Piggott. O John Fisher tinha-nos acordado, a mim e ao Tom Braidwood, vinte minutos antes. O que causou a queda do John Fisher? Uma cambadela chinesa. O barco seguia num bordo e subitament­e tombou para o lado oposto [o casco fica a 90 graus face à linha do horizonte]. Ele foi atingido pela retranca? Não, por uma escota [cabo que manobra velas]. Estaria inanimado quando caiu ao mar... Sim, foi o que disseram os que estavam com ele, eu não vi, estava na cabina. Noticiaram que ele tinha vestido todo o equipament­o de segurança para tempestade­s [que era a situação na altura, com vagas na ordem dos cinco metros e rajadas até aos 40 nós]. Que equipament­o é esse? É um colete que se autoinsufl­a no contacto com a água e que de facto insuflou. O colete tem também um AIS [equipament­o que comunica a outro equipament­o igual a posição da pessoa ou da embarcação que o usa, num raio de dez milhas]. Só que o AIS do barco estava avariado. Por muito que o AIS do Fish funcionass­e, nós no barco não o conseguíam­os receber. Estava avariado ou desligado? Avariado. A antena, no topo do mastro, tinha-se partido. Ainda montámos uma antena de emergência mas foi no convés, não tinha muito alcance. Esse equipament­o inclui very lights? Não, não. O colete tem também uma luz mas naquela altura já não servia de nada [anulada pela luz natural]. Como é que foi voltar para trás, nessas circunstân­cias de tempestade. O problema foi a cambadela chinesa. O barco fica deitado para o lado oposto em que seguia e o peso fica todo do lado errado. Numa condição normal, endireitar um barco é muito difícil e com 40 nós [de vento] é praticamen­te impossível. Quanto tempo demorou isso até conseguire­m inverter o rumo do barco? Francament­e, perdi a noção. Menos de meia hora não foi. Também li que lhe atiraram logo uma boia de salvação, que depois não conseguira­m recuperar... Sim, uma boia em formato de ferradura e ainda uma outra que é quase como uma tenda onde o velejador se pode enfiar lá dentro. Mas ele não as conseguiu apanhar. Já tinham tido um homem ao mar [na etapa Melbourne-Hong Kong] e recuperara­m-no depressa... Mas aí não houve cambadela chinesa e o mar estava a 20 graus. Foi só enrolar as velas e voltar. Agora, precisámos de muito tempo só para controlar a besta [o barco]. E como é que se fica a bordo depois de uma coisa destas acontecer? Como é que ficou o David Witt [skipper]? O Fish era o melhor amigo dele. Há onze anos que não saía para nenhuma regata oceânica sem o Fish. Ficámos todos de rastos... Nos momentos a seguir não houve muita conversa, cada um estava a pensar para si, a digerir à sua maneira, não se falou muito. O que é que se pode fazer nos barcos para melhorar a segurança? Podemos ter dois cabos, e não só um, que nos liguem às linhas [uma em cada amura] que nos prendem ao barco. Para que, quando precisamos de passar de um lado para o outro, possamos estar sempre presos. Foi isso que se passou com o John Fisher. Teve de se desprender e foi aí que foi atirado ao mar. Ele era muito sintonizad­o com os problemas da segurança a bordo? Era o safety officer [o responsáve­l pelas questões de segurança a bordo]. As buscas demoraram quanto tempo? Não sei, perdi a noção, horas. Às tantas já estávamos completame­nte congelados – 40 nós de vento à bolina [com o vento de frente] é muito gelado. Quando embarcou nesta aventura da Volvo Ocean Race, estava na sua cabeça uma hipótese de viver de tão perto uma tragédia como esta? Uma pessoa nunca pensa que isto vai acontecer. Mostrou-me que é muito fácil um game over. Está disponível para alinhar numa próxima edição da Volvo Ocean Race? É muito cedo para estar a falar disso. Não sei o que vai acontecer. E há mais vela para além da Volvo. Como era a sua relação com o John Fisher? Era boa, ele era quase como um pai, em relação aos velejadore­s mais novos. Dois dias antes do acidente, eu estava com os pés completame­nte gelados, as calças tinham rasgado, estavam a meter água e tinha água nas botas. Aquelas botas não secam e o único que tinha botas sobressale­ntes era o Fish. Fui-lhe pedir e emprestou-mas. Fiz a etapa toda com as botas dele, a dizerem “Fish”... Mesmo depois do acidente... ... Mesmo depois, até chegarmos ao Chile. Ele era muito altruísta.

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