Sem manha nem patranha
Acredito que é possível fazer uma reforma eleitoral sem truques nem malabarismos, sem engenharias nem golpadas. Acredito que uma reforma eleitoral séria e honesta, impecável nos propósitos e justa no seu desenho, é a única que pode ser feita. Acredito, porque é a única que pode colher o interesse e o apoio da opinião pública, alcançar a maioria na Assembleia da República e passar no crivo atento do Presidente da República; e é a única que, garantidamente, não será chumbada no Tribunal Constitucional.
Na SEDES e na APDQ, é isto que pensamos. Com a liberdade e o desprendimento de sermos sociedade civil, é nisso que nos aplicamos. Mais: quando olhamos para trás e perguntamos como é possível ter deitado fora 20 anos após a revisão constitucional de 1997, a resposta está aí: perdemos tempo, porque não foi feita a reforma séria e honesta para que o artigo 149.º da Constituição abriu a janela, a porta e a cancela.
Retomo o final do meu artigo anterior, perante a réplica de Jorge Cordeiro, “Boas intenções e conhecidas manhosices”. Compreendo boa parte das confianças e reservas do PCP. Mas creio que é possível fazer bem e não se deve renunciar a fazer bem.
Uma das razões de desconfiança tem sido a pressão para reduzir para 180 (ou perto) o número de deputados. Não é preciso ser génio matemático para entender que o corte abrup- to de 50 deputados atingiria os partidos médios (e os círculos mais pequenos) com benefício relativo para os maiores. No debate legislativo de 1998, o deputado Luís Sá (PCP) criticava esses propósitos: “As comparações internacionais mostram que a relação do número de habitantes por deputado em Portugal não é baixa e muito menos das mais baixas na Europa ou no mundo.” Eu podia assinar por baixo. Em 2006, fiz esse estudo, país a país da União Europeia; cheguei às mesmas conclusões. A nossa proposta mantém, por isso, a ordem de grandeza atual: 229 deputados.
Mas Luís Sá disse coisas mais relevantes: “Se há coisa que afasta os deputados dos eleitores não é não haver círculos uninominais é, sim, os cidadãos verem que os deputados verdadeiramente não decidem, que aquilo que debatem não é para valer, que tudo depende de negociatas de bastidores entre os diretórios partidários dos dois principais partidos e que os deputados se limitam a fazer o que lhes mandam.” Certeiro! É isto mesmo. De 1998 para cá, só mudou serem somente “os dois principais partidos”.
Este problema não interessa apenas a esses deputados ou aos partidos visados, mas interessa a todos, ao país, à cidadania – é um problema do sistema político. Interessa a Portugal, interessa aos portugueses que a centralidade do poder esteja na Assembleia, na competência decisória dos deputados, na sua decisão informa- da, livre e criteriosa – e não na mesa de um restaurante, numa sala de hotel ou troca de SMS, por trás de um biombo de salão ou numa combinata de corredor. Se não, o regime é uma farsa. É essa farsa que nos conduziu à ruína – e à corrupção também.
Só a renovação do sistema na linha da Constituição, introduzindo círculos uninominais em articulação com listas plurinominais, no sistema misto de “representação proporcional personalizada”, causa o renascimento da participação democrática. Dando poder às bases, aos eleitores e à opinião pública, restitui autenticidade à democracia e raiz à representação.
Já escrevi que, introduzindo agora esta reforma, a abstenção cairia nas próximas eleições por certo para menos de 30% – hoje está em 45%. Não é porque me preocupe sobretudo a abstenção. O alto nível de abstenção é apenas o sintoma; o que há que tratar é a doença, é a erosão da confiança dos eleitores no sistema, a descrença, o alheamento. Este sistema abre a esperança, convoca a participação, repõe a confiança. Para Jorge Cordeiro, a raiz da abstenção germina “na política de direita e na ausência de resposta aos problemas e às aspirações do povo”. Este discurso é conhecido, mas não é assim. Olhando às autárquicas no distrito de Setúbal, onde o PCP lidera, a abstenção ficou dez pontos acima da média nacional tanto em 2013 como em 2017. O problema é mais profundo e tem que ver com o prestígio da democracia partidária.
Quando recorremos ao exemplo da Alemanha, não é por fé no direito comparado. O direito é nosso; a prática é que pode ser-nos útil para, ao ver o funcionamento específico destes círculos uninominais, verificarmos que as ideias feitas estão erradas; e para adotar, rejeitar ou adaptar o que convenha, ou não, a Portugal.
Jorge Cordeiro preocupa-se com que os deputados representem todo o país e não só os seus círculos. Mas, na Alemanha, também é assim. Di-lo o art. 38.º, n.º 1, da Constituição alemã: “Os deputados (...) são representantes de todo o povo.” E, se adotada a reforma que propomos, a norma no espírito de Jorge Cordeiro manter-se-ia intocada: “Os deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos.” Aí, não há mudança.
O sistema eleitoral alemão é a evidência escancarada de como a articulação de votos uni e plurinominais resolve a quadratura do círculo e nos dá o que queremos: um Parlamento rigorosamente proporcional, mas com deputados que nós escolhemos. Não é só um sistema que funciona; é que funciona muito bem. Quanto mais o estudo, mais me entusiasma. Não é só o sistema ser sábio; é ser genial.
Porque podem os alemães escolher e nós não? Porque é que os alemães podem eleger os seus deputados e nós não? O que é que os alemães são mais do que nós?