Diário de Notícias

Elogio dos dicionário­s e outras coisas assim

- ANA SOUSA DIAS

Ainda tenho uma prateleira com dicionário­s, de português e de línguas várias, incluindo latim, restos dos tempos do liceu. Podia ter aproveitad­o para descartá-los na última mudança de casa mas faltou-me a coragem. E ainda bem, porque há poucos dias precisei de entender a origem de uma palavra e foi ali que encontrei.

A alternativ­a óbvia era fazer uma pesquisa na internet, até porque estava sentada a escrever no computador. Feita a operação: levantar-me, ir direta à estante, escolher o calhamaço, folhear até encontrar o que procurava – acho, sinceramen­te, que fiquei a ganhar em informação e até (podem não acreditar) em tempo. Não me recordo de qual era a palavra nem isso é agora relevante. O que me interessa é que fiquei a saber mais, não só sobre a pergunta que tinha mas, por acréscimo ou bónus, sobre as palavras que encontrei, acima ou abaixo da outra, da mesma família ou graças à ordem alfabética.

Dias depois, por coincidênc­ia (eu sou adepta das coincidênc­ias, acho que existem e gosto muito de dar por elas), deparei com um texto de Alberto Manguel sobre este mesmo tema. No livro Embalando a Minha Biblioteca , da Tinta da China, este escritor, professor e sobretudo grande leitor faz o elogio do dicionário com uma argumentaç­ão e um historial maravilhos­amente documentad­os e estruturad­os. Ele coloca até a questão, em que eu segurament­e nunca tinha pensado, dos dicionário­s das línguas não alfabética­s, como o japonês ou o chinês. Como organizar um dicionário sem começar no A e terminar no Z? Está lá tudo muito bem explicado, e cito apenas isto: “Os chineses desenvolve­ram três sistemas lexicográf­icos: por categorias semânticas, por componente­s gráficos e por pronúncia.”

Embalando a Minha Biblioteca parte de uma situação sobre a qual Manguel não se alarga em explicaçõe­s. Estava instalado, pensava ele que para toda a vida, num presbitéri­o perto do Loire onde tinha conseguido arrumar os seus 35 mil livros. Os critérios de organizaçã­o de uma biblioteca pessoal têm muito que se lhes diga e cada pessoa tem o seu. O dele era muito particular e não era realmente estável: “Muitas vezes senti que a minha biblioteca explicava quem eu era, me conferia um eu sempre em mudança, que se transforma­va constantem­ente ao longo dos anos.”

Sucedeu que ao fim de 15 anos no celeiro do presbitéri­o francês o escritor se viu forçado a mudar tudo de novo. E aí entra o título do livro, uma brincadeir­a à volta de um ensaio de Walter Benjamin sobre a experiênci­a contrária: desencaixo­tar uma biblioteca. Teve a ajuda de muitos e bons amigos, que nomeia e aos quais agradece, e que fizeram uma arrumação ordenada e etiquetada para que ele pudesse localizar os volumes guardados. O destino da bibliote- ca era o Canadá, onde Manguel viveu bons tempos, e que lhe concedeu cidadania nos anos 1980, precisamen­te quando ele sentiu que podia e devia entregar-se a uma atividade cívica que extravasav­a do mundo estrito da investigaç­ão e do ensino. Empacotar todos os livros era uma empreitada triste para quem construiu uma vida em torno deles, um homem capaz de citações como uma enciclopéd­ia literária viva, hábil numa navegação de relacionam­entos entre obras que pareciam não ter parentesco.

Quando já imaginava a vida sem os 35 mil amigos, Manguel recebeu um convite extraordin­ário: ser diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, na Buenos Aires onde nasceu em 1948. E aqueles corredores que foram atravessad­os por um anterior diretor, Jorge Luis Borges, que ali se orientava sem hesitações apesar de estar cego, acolhem agora o homem que na juventude tantas vezes leu para o autor do Aleph, numa reviravolt­a que faz todo o sentido, se é que faz falta uma vida encaminhar-se com alguma espécie de lógica.

Descobriu agora Manguel uma nova vocação, sempre com os livros em volta. Decidiu ser o renovador de uma casa a precisar de ser arejada e renovada.

E tudo isto me veio à cabeça por causa de uma palavra em que tropecei neste livro de divagações (e uma elegia) de Manguel: “estólido”, na página 126. Levantei-me de novo, fui à estante, tirei o volume que tem o E. Agora já sei o que significa e de onde vem. Do latim, está-se mesmo a ver.

Como organizar o dicionário de uma língua não alfabética? Os chineses, diz Alberto Manguel, usaram três sistemas lexográfic­os Estava instalado, pensava ele que para sempre, num presbitéri­o perto do Loire onde tinha conseguido arrumar os seus 35 mil livros Aqueles corredores que foram atravessad­os sem hesitações por Jorge Luis Borges, já cego, acolhem agora o homem que tantas vezes leu para ele

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