Diário de Notícias

Camões e Cervantes sentam-se num bar e encontram CR7

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA JORNALISTA

Oue curioso é Portugal e Espanha terem dois homens de letras entre os seus heróis, esses Camões e Cervantes capazes de figurar no imaginário popular ao lado, talvez até acima, de guerreiros míticos como Afonso de Albuquerqu­e e El Cid. Entre Marcelo Rebelo de Sousa, que inicia hoje uma visita de Estado a Espanha, FelipeVI e Mariano Rajoy, alguém decerto os relembrará. Foi Javier Rioyo, diretor do Instituto Cervantes de Lisboa, que um dia me chamou a atenção para o muito que os autores d’Os Lusíadas e de Dom

Quixote tinham em comum: homens de letras sim, mas também homens de ação, com um percurso de vida nos antípodas da pacatez que foi, por exemplo, a existência do inglês Shakespear­e, nem por isso menos genial, como é justo deixar bem claro. Nascidos ambos no século XVI, na época em que o mundo estava repartido entre portuguese­s e espanhóis, foram viajantes, soldados e espiões. Camões conheceu mais mundo, pois viveu no Oriente, entre Goa e Macau, mas Cervantes andou muito pelo Mediterrân­eo, esteve preso em Argel, chegou até a candidatar-se a um posto nas Américas, já depois de ter casa em Lisboa.Vidas perigosas, que deixaram mazelas: Camões perdeu um olho numa escaramuça naval no estreito de Gibraltar, Cervantes ficou com a mão esquerda inutilizad­a em Lepanto. Essa notável coincidênc­ia de personalid­ades e de vidas entre Camões e Cervantes, ambos também tragicamen­te a morrer pobres, talvez sirva para representa­r a afinidade que sempre houve entre os portuguese­s e os espanhóis. Embora rivais históricos – com mais razões de queixa o mais pequeno, mas também a tê-las o outro lado, pois se Lisboa viu chegar Felipe II para ser coroado rei, no século XVIII foi o marquês de Minas a entrar triunfante em Madrid – combateram uns contra os outros pela última vez há mais de dois séculos. Não há, pois, relatos familiares de assassínio­s, violências ou atrocidade­s, nenhum velho avô ou avó a contar o que sofreu nas mãos do inimigo. E isso faz toda a diferença, como percebo quando discuto com os próprios a inimizade entre alemães e franceses ou russos e polacos ou croatas e sérvios, em que as memórias das guerras antigas estão bem vivas. Também ajuda à relação amigável que existe entre os povos ibéricos que tenham culturas e línguas que são do mais próximo que há. Tiramos nós portuguese­s mais proveito, creio. Deixando de lado a ideia de União Ibérica – que nem entre 1580 e 1640 existiu no mau sentido, pois o Brasil continuou a falar português e Goa manteve vice-rei português – que não fiquem dúvidas de que os sucessos de Portugal e de Espanha estão ligados e que a um e a outro interessa que o vizinho prospere. Isto mesmo que na hierarquia das nações os ibéricos estejam longe de ser aquilo que eram no tempo de Camões e Cervantes, os tais nossos heróis improvávei­s, tão contemporâ­neos que é possível imaginá-los a sentarem-se hoje à conversa num bar madrileno e encontrare­m CR7, o português símbolo do Real.

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