Uma vitória “perfeita”, com danos colaterais
Um bombardeamento “perfeito!”, tuitou Donald Trump aclamando o ataque da madrugada de sábado a alvos sírios. Uma proclamação de triunfo, mas que parecia ao mesmo tempo trair uma expressão de alívio. “Missão cumprida!”
Tudo começa no passado dia 7, quando os White Helmets, organização humanitária síria com raízes britânicas, denuncia ao mundo um ataque químico das forças fiéis a Bashar al-Assad contra o bastião rebelde de Douma. A notícia cai como uma bomba. Decorridas horas, o presidente dos Estados Unidos garantia num tweet indignado que o alegado crime não ficaria impune e que não só a Síria mas também a Rússia e o Irão iriam “pagar “um preço muito elevado”.
Moscovo reagiu ameaçando intercetar os mísseis e atingir os autores dos disparos caso o dispositivo militar russo na Síria fosse atingido. O mundo susteve a respiração perante a ameaça de um confronto direto entre russos e americanos.
Seguiram-se dias de alguma confusão. Trump mergulhava de novo numa série de contradições. Macron garantia ter provas da utilização de armas químicas em Douma – sem nunca as revelar – ao mesmo tempo que insistia na urgência de uma investigação cabal e no diálogo com Putin. Merkel demarcava-se de qualquer ação militar.
Entre as elites políticas e as opiniões públicas ocidentais as opiniões dividiam-se. A indignação era unânime, mas havia igualmente manifestações de ceticismo – eco ainda, talvez, do mal esclarecido caso Skripal. Peter Ford, antigo embaixador britânico na Síria, dizia aos microfones da BBC que lhe parecia pouco verosímil o ataque químico de Assad – para mais no momento em que a resistência dos rebeldes em Douma chegava ao fim. Observou-se que os rebeldes que combatem o regime de Assad dispõem igualmente de armamento químico. Chamou-se a atenção para o peso dos problemas domésticos nos cálculos tanto de Trump como de Theresa May e Macron.
Tinha entretanto decorrido uma semana. O timing político e emocional para uma punição militar legitimada em boa parte pela onda de indignação provocada pelas denúncias de Douma estava de algum modo esgotado, mas a inação era igualmente comprometedora.
Às quatro da manhã de sábado – horas antes da chegada à Síria de uma equipa de inspetores da OPCW –, os Tomahawk, os
Storm Shadow e seus pares voavam em direção à Síria.
A Turquia de Erdogan juntou-se prontamente ao coro de condenações ao regime de Assad e aplaudiu a punição militar a Damasco. Isto, no momento em que o exército turco está empenhado numa operação no nordeste da Síria para desalojar as milícias curdas, apoiadas pelos Estados Unidos.
Chegou-se a falar de um acordo que entregaria o controlo da região a Damasco em troca da garantia de impedir a consolidação de posições curdas na área. O exército turco não parou o seu avanço e Ancara proclamou alto e bom som que não tencionava retirar da faixa de território ocupado na Síria.
A questão introduz uma nova incógnita no imbróglio sírio. Qualquer avanço das forças sírias a norte em direção a Idlib entra em choque com os rebeldes apoiados por Ancara e com o próprio exército turco. A situação coloca a Rússia numa posição delicada, entre o apoio a Assad e o risco de ver postos em causa os preciosos argumentos geopolíticos em jogo no bom entendimento com a Turquia.
A situação na Síria continua a representar uma jogada de alto risco para Moscovo. Os fantasmas do Afeganistão e da Chechénia continuam presentes e, a arrastar-se, a intervenção na Síria arrisca-se a gerar resistências na opinião pública russa. E a teia de interesses geopolíticos em jogo na Síria não permitem vislumbrar uma saída para o conflito.
A Rússia não dispõe de recursos para aspirar à condição de ator global. A lógica da política externa e de defesa russa é eminentemente regional e defensiva. As duas importantes bases militares russas no norte da Síria – Hmeimim, perto de Latáquia (uma herança do período soviético), com base em acordos da URSS e uma base naval em Tartus garantem ainda assim a Moscovo uma importante presença no Mediterrâneo.
Mas o conflito da Síria tem outra dimensão crucial para Moscovo. Uma Síria rendida ao caos, ao jihadismo sunita ou dominada por um regime hostil comportava uma ameaça de contágio nas áreas muçulmanas do Cáucaso do Norte. Uma ameaça que é vital para a Rússia conter.
O bombardeamento “perfeito” da Síria terá ainda deixado alguns amargos de boca na Casa Branca e no Pentágono. Em vez de se abster, como muitos esperavam, a China assumiu claramente o lado da Rússia nesta crise. A mesma China que, juntamente com a Rússia (e com o Irão e a Coreia do Norte mais atrás), suplantou a “ameaça terrorista” como o grande desafio à América no novo conceito estratégico dos Estados Unidos.
O bombardeamento “perfeito” da Síria terá deixado amargos de boca na Casa Branca e no Pentágono. Em vez de se abster, como muitos esperavam, a China assumiu claramente o lado da Rússia nesta crise