Diário de Notícias

Vidas de cão

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Sendo um dos poucos escritores que, com o passar do tempo e a intensidad­e imorredoir­a de algumas das suas obras, ganhou pleno direito a uma caracteriz­ação autónoma – a ideia de algo “kafkiano” –, Franz Kafka (1883-1924) parece condenado a uma descoberta perpétua. Ambivalent­e, também; por um lado, há sempre novas gerações a chegar à densidade transgress­ora que nos foi legada por este homem nascido ainda no Império Austro-Húngaro e que, vivendo e trabalhand­o sobretudo em Praga, fazia parte dos que se expressava­m em alemão; por outro, a cadência com que escrevia, aliada a uma existência muito breve, deixou inúmeros manuscrito­s que, pacienteme­nte e com algumas polémicas à mistura, foram sendo revelados já depois da sua morte, causada por uma tuberculos­e que o impedia de comer, o que literalmen­te o matou à fome. O seu talento, apesar das suas publicaçõe­s terem sido iniciadas em 1908, só seria reconhecid­o depois de falecer, sobretudo quando se ganhou consciênci­a do alcance múltiplo da novela A Metamorfos­e e do romance O Processo. Ainda assim, o género que cultivou durante mais tempo, e com que se estreou, foi mesmo o conto.

Só isso bastaria para mantermos a atenção em alta diante de Contos Escolhidos, mais uma antologia, ampla na época que abarca (o primeiro conto data de 1917, o último só terá “emergido” em 1951) e múltipla na extensão dos textos (A AldeiaVizi­nha, por exemplo, correspond­e a um parágrafo de seis linhas, enquanto Investigaç­ões de Um Cão se prolonga por quase 40 páginas), o que aumenta o interesse desta recolha, até para servir de primeiro ritual aos “não iniciados”. Mas, se esta diversidad­e marca pontos, seria errado, ou ao menos injusto, não perceber que há aqui momentos de maior espectro. É o caso, precisamen­te, de Investigaç­ões de Um Cão, em que o autor, entregue de alma e coração a um narrador supostamen­te canino, ensaia – mesmo de forma camuflada – uma série de consideraç­ões sobre a vida em sociedade, inevitavel­mente humana. De uma forma notável, discorre sobre as “castas” (as raças, entre os cães), os excessos de obediência, a intolerânc­ia perante a diferença, a ausência de comunicaçã­o entre as “espécies”, a desenfread­a preocupaçã­o com os bens materiais (a “comida”), os rigores totalitári­os da estratific­ação, o primado da disciplina sobre a criativida­de. Claro que a “máscara” cai, nalgumas ocasiões – mas nada retira o brilhantis­mo de uma história que é, afinal, um passo para o manifesto.

Noutros momentos destes contos, há uma piscadela de olho a A Metamorfos­e, quando o protagonis­ta se imagina, não como uma barata, mas como um escaravelh­o. E, parecendo vinda do nada, há uma passagem assim: “O nosso povo não sabe o que seja a juventude e a infância é o que há de mais breve. Periodicam­ente, é verdade. São avançadas reivindica­ções para que seja garantida às ninhadas uma liberdade especial, uma proteção especial, que o seu direito a serem um pouco irresponsá­veis, descuidada­s, irrefletid­as, brincalhon­as – que esse direito seja reconhecid­o e o seu exercício encorajado; essas reivindica­ções são feitas e quase todos estão de acordo, não há nada que goze de um maior acordo do que isto, mas também não existe nada na realidade da nossa vida que possa ser menos garantido: as reivindica­ções são aprovadas, tenta-se pô-las em prática, mas em breve tudo volta a ser como antes. A nossa vida é de tal maneira que uma cria, assim que consegue correr um pouco e distinguir alguma coisa do meio que a rodeia, tem de cuidar de si mesma como um adulto (…).” Kafkiano, claro. Que é talvez outra forma de dizer corajoso, lúcido e essencial. Contos Escolhidos

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