Uma questão de vida
De Platão a Aristóteles, passando por Francis Bacon e John Stuart Mill, até Emmanuel Kant, a discussão sobre a eutanásia é quase tão antiga como a história da civilização e vem convocando debates intensos até aos dias de hoje. E, até hoje, apenas a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo, o Canadá e cinco dos 50 estados dos Estados Unidos da América transformaram a discussão em lei e legalizaram a eutanásia.
Não obstante o (ainda) estado embrionário da discussão, em Portugal, PAN, BE e PS abandonaram já a querela e avançaram com soluções legislativas para despenalizar e regulamentar a eutanásia.
Do grego euthanatos, a etimologia da palavra eutanásia conduz-nos ao cerne da questão: a boa morte, a morte feliz e digna, a morte por compaixão para acabar com a dor e o sofrimento.
Mas será a eutanásia a solução para acabar com o sofrimento? Será que a legalização da eutanásia, apelando aos bons fins, não elegerá os maus meios? Será que não há outros recursos (eficazes) para evitar a dor e o sofrimento que não a morte? Será que a legalização da eutanásia não resvalará do contexto estrito da doença terminal e do sofrimento insuportável para um contexto bastante mais lato? Será que a legalização da eutanásia não abre a porta à desresponsabilização do Estado? Será que as experiências atuais e históricas não nos ensinaram nada sobre o caminho que devemos seguir?
São estas as perguntas que pairam no ar e é a elas que é preciso responder.
Sim, responder ao problema prático – àquilo com que, inelutavelmente, todos nos confrontámos já ou nos confrontaremos – e não apenas ao problema ético ou filosófico, ou ao problema médico ou jurídico. Não que o debate ético, filosófico, médico ou jurídico não tenha importância. Tem. E muita. Ele baliza aquilo que é aceitável e aquilo que não é aceitável.
Deixando de lado convicções religiosas ou dogmas de fé – que é o que este debate não é e não deve ser – e recusando que de um lado estão os progressistas – os que defendem a dignidade na morte – e do outro os retrógradas – os que aceitam uma vida de sofrimento e uma morte indigna, as conceções filosóficas sobre a vida e a morte, a ética médica, bem como o alcance constitucional do princípio da inviolabilidade da vida humana, têm feito gastar alguma tinta e elevado os decibéis. Há argumentos para todos os lados e em todos os lados há razões que tocam o coração. O que não é aceitável é entender que a vida humana é um bem disponível e que há vidas que podem não ser vividas.
Mas o ponto não é só esse, como dizia. O debate prático, o que, no fim do dia, fará a diferença na vida de cada um de nós – saber se é possível, ou não, viver sem sofrimento e sem dor e se a morte é a única solução – é o debate que urge.
Numa sociedade moderna e solidária como a que temos hoje, está científica e clinicamente comprovado que é possível morrer com um acompanhamento médico efetivo e eficiente, onde o sofrimento e a dor não têm lugar.
Numa sociedade moderna e solidária como a que temos hoje, é já considerada má prática a obstinação terapêutica, o tratar a qualquer custo sem nenhum benefício associado, prolongando a vida artificialmente e, aí sim, em sofrimento.
Numa sociedade moderna e solidária como a que temos hoje, é já possível aos doentes pronunciarem-se sobre o tipo de tratamento – ou não – que desejam ter, depois de devidamente informados sobre a natureza da sua doença e o tempo de vida estimado.
É exatamente neste contexto que o CDS-PP tem defendido que a eutanásia não é a solução para acabar com uma vida de dor e de sofrimento e que a resposta passa não só pelo investimento e o reforço dos cuidados paliativos ou a informação sobre as opções disponíveis ao nível do Testamento Vital, mas também pela consagração em lei expressa dos direitos dos doentes em fim de vida, a par da condensação legal das imposições deontológicas e boas práticas clínicas. É isso mesmo que estatui o projeto de lei sobre os direitos das pessoas doentes em fim de vida, que o CDS-PP espera ver aprovado em breve.
Privilegiar a eutanásia em detrimento de outras respostas eficazes de mitigação da dor e do sofrimento significará a demissão do Estado da sua missão mais importante – a proteção das pessoas. E, mais do que isso, mostrará que o Estado optou pela solução imediatista e, necessariamente, mais económica.
Mas mais: deixará aberta uma porta de que o CDS-PP não quer, sequer, ver uma frincha – que os mais frágeis e enfermos, por se sentirem um peso nas famílias agitadas de hoje, se queiram apagar, não por não quererem mais viver, mas por não quererem ser mais um estorvo na vida dos seus mais queridos.
De resto, são conhecidas as experiências internacionais que deslizaram das doenças terminais e em sofrimento indizível de maiores de idade para as doenças incuráveis, do foro psiquiátrico ou de crianças, avolumando a cada ano o número de mortes por eutanásia.
É mesmo isto que nós, portugueses, queremos? Espero que não.
Há argumentos para todos os lados e em todos os lados há razões que tocam o coração. O que não é aceitável é entender que a vida humana é um bem disponível e que há vidas que podem não ser vividas?