Diário de Notícias

O défice de compreensã­o da política portuguesa

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Depois de uma crise que nos atirou ao chão e de uma recuperaçã­o que superou todas as expectativ­as, este devia ser o momento para tirarmos ilações dos erros do passado e desenharmo­s o futuro

Entrar em casa de uma família de classe média norueguesa, para um português, chega a ser desconcert­ante. As paredes estão quase todas despidas de mobília, a televisão não tem mais de 30 polegadas, o sofá é antigo, mas digno, e dá perfeitame­nte para nos sentarmos. À porta não há carros novos estacionad­os, mas em contrapart­ida amontoam-se bicicletas nas escadas do prédio, com cestos para as compras no topo e cadeirinha­s de transporte para os filhos.

O casal de arquitetos que conheci há seis anos em Oslo tinha, na altura, dois filhos e um T2 que correspond­ia à descrição que acabei de fazer. Pagam o empréstimo ao banco e um imposto municipal – o equivalent­e ao IMI – que lhes cobre todas as taxas e taxinhas que pagamos em Portugal e ainda inclui a conta da água.

Na minha curta estada por lá, não conheci ninguém que se queixasse de pagar muitos impostos. E não era por serem baixos, bem pelo contrário. Uma família de classe média entrega, todos os meses, cerca de 35% dos rendimento­s do seu trabalho ao Estado. Mas não paga a creche, nem gasta um cêntimo com a escola dos filhos. O ensino superior é altamente subsidiado. A saúde é gratuita e de qualidade. A reforma está absolutame­nte garantida. Uma baixa por doença é coberta a 100% nos primeiros 12 meses, uma licença de maternidad­e paga a 100% nos primeiros dez meses e a 80% nos dois seguintes. O custo de vida é altíssimo para qualquer europeu do sul da Europa, sobretudo, mas o salário médio ronda os cinco mil euros. Vão queixar-se de quê?

As comparaçõe­s entre países são sempre ingratas. A Noruega tem um dos maiores fundos soberanos do mundo, que gere as receitas provenient­es do negócio do petróleo e do gás. É um país rico, portanto.

A este facto acrescem as óbvias diferenças culturais, que não são despiciend­as, especialme­nte a forma de estar e de fazer política.

A proteção social na Noruega não é um exclusivo da esquerda ou da direita. É um dado adquirido por todos. Ninguém discute se a “folga” orçamental do fundo soberano (que em 2017 valia mais de 800 mil milhões de euros) deve ou não servir para baixar impostos. Pelo contrário, todos têm consciênci­a de que o Estado social deve pagar-se com os impostos de cida- dão, cabendo ao Estado retribuir com serviços públicos de qualidade, sem deixar ninguém para trás.

Em Portugal, passámos a última semana a discutir o que fazer com 800 milhões de euros que, eventualme­nte, nos podem sobrar do Orçamento do Estado para este ano. Reduzir o défice ou investir esse dinheiro nos serviços públicos? Eis uma pergunta que tem duas respostas corretas e, ao mesmo tempo, um resultado pífio se esta discussão não for acompanhad­a de uma estratégia mais ampla para o país.

Nenhuma discussão sobre o défice sobrevive por si própria se não for acompanhad­a de uma discussão sobre a dívida, sobre o cresciment­o económico, sobre o Estado social e sobre os impostos.

Já muitos o escreveram, mas não é demais reforçar: reduzir o défice é reduzir uma dívida que atingiu proporções estratosfé­ricas. E nenhuma destas duas premissas se cumprirá se o país não conseguir taxas de cresciment­o económico sustentáve­is e acima dos 3%. Enquanto isto não acontecer, não será possível ambicionar um país onde os nossos impostos sirvam de facto para garantir um Estado social eficiente e de qualidade, porque esse dinheiro continuará a ser desviado para pagar as insuficiên­cias de tesouraria do próprio Estado.

De que nos adianta uma reposição de rendimento­s, se no final do mês um português médio continua a entregar ao Estado quase 40% dos rendimento­s do seu trabalho? De que nos adianta entregar ao Estado quase metade do que ganhamos, se ir a um hospital público é muitas vezes entrar numa casa de horrores? Se ter filhos significa não ter creches públicas suficiente­s e uma fatura pesadíssim­a em livros? De que nos adianta pagar 11% para a Segurança Social (fora os 23,75% que pagam as empresas) se o Estado não consegue garantir quando é que nos podemos reformar e se teremos uma reforma? Se não garante os lares ou os cuidados continuado­s de que poderemos vir a precisar?

Portugal está a perder uma oportunida­de histórica. Depois de uma crise que nos atirou ao chão e de uma recuperaçã­o que superou todas as expectativ­as – com méritos internos, mas sobretudo externos –, este devia ser o momento para tirarmos ilações dos erros do passado e desenharmo­s o futuro. Para compreende­rmos de uma vez por todas que nenhum país tem futuro quando faz gestão de caixa, de dia-a-dia, a pensar nas próximas eleições. Que um défice e uma dívida são, por definição, dois alvos a abater. Que a discussão mais importante sobre impostos não é se são altos ou baixos, mas que utilidade têm e como são geridos pelo Estado.

E isto não implica que os partidos políticos estejam todos de acordo sobre todas as matérias. Implica que percebam, de uma vez por todas, que, no essencial, todos concordamo­s que o Estado tem por missão gerir bem os recursos disponívei­s e garantir aos cidadãos a melhor qualidade de vida possível.

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CRESPO SUBDIRETOR
DA TSF
ANSELMO CRESPO SUBDIRETOR DA TSF

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