#Cuéntalo. Movimentos sociais ajudam a denunciar violações
O medo e a vergonha fazem que muitas vítimas de agressões sexuais se mantenham em silêncio após os crimes. Especialistas acreditam que, tal como em Espanha, muitos casos ficam por denunciar em Portugal
UMAR considera que o país deve refletir sobre a necessidade de tornar a violação um crime público, o que teria um efeito dissuasor
“Um professor violou-me durante dois anos”; “Um tipo drogou-me, colocou algo na minha bebida quando eu era adolescente e aproveitou-se de mim no meio da rua”. Dois exemplos entre centenas de histórias de abusos e agressões sexuais, relatadas nos últimos dias, no Twitter, com a hashtag #Cuéntalo. Um movimento que surgiu no âmbito do polémico caso La Manada e que fez que muitas mulheres quebrassem o silêncio em Espanha. Ao DN, duas especialistas dizem que os crimes sexuais estão entre os que têm maior cifra negra, também em Portugal, e que estes movimentos ajudam a “desocultar” violações.
“Com a revelação destes casos, é muito vulgar as pessoas perderem o medo e a vergonha e partilharem também as suas histórias. Isto mostra que estes crimes sexuais têm uma elevadíssima cifra negra”, diz ao DN Marlene Matos, doutorada em Psicologia da Justiça. Questionada sobre a situação em Portugal, a professora da Universidade do Minho refere que, “em todos os países, o que conhecemos das denúncias de crimes sexuais é apenas a ponta do icebergue”.
Em causa está “o medo, a vergonha e a ameaça de represálias”, que fazem que os crimes não sejam denunciados, levando a que a realidade da violência sexual esteja “muito escondida”. “Estes movimentos ajudam a desocultar situações de violação que ainda não foram tornadas públicas. Dão coragem para as pessoas procurarem ajuda”, sublinha Marlene Matos, destacando, no entanto, que “a melhor forma de as encorajar é fazendo justiça”.
A maneira como o caso La Manada foi julgado não ajuda, na opinião da investigadora, a que outras vítimas quebrem o silêncio. “Era importante que houvesse uma justiça justa.” Em causa está a condenação de cinco homens, acusados de violar uma jovem nas Festas de San Fermín, em Pamplona, a nove anos de prisão por “abuso sexual continuado” e não por violação. Um dos três juízes pediu, inclusive, a absolvição dos arguidos, por con- siderar que, nos vídeos, a vítima tinha uma expressão “relaxada”.
Para Manuela Tavares, cofundadora da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), esta sentença “mostra que há muito para fazer, inclusive para alterar as mentalidades dos juízes”. Em Portugal, prossegue, “também temos tido situações deste tipo, que mostram o machismo nessa classe de profissionais”. “Esse tipo de pessoas nunca deviam exercer a função de juízes”, sublinha.
A feminista lembra que “as violações não são ainda do conhecimento público porque as mulheres têm muito receio de as revelar”. À semelhança do que aconteceu nas situações de “violência contra a mulher nas relações de intimidade”, Manuela Tavares diz que é preciso “criar condições para as mulheres denunciarem”.
Tal como ocorreu com o movimento #metoo, no qual eram denunciados casos de assédio sexual nas redes sociais – e que levou algumas portuguesas a partilharem as suas histórias –, Manuela Tavares considera que a hashtag #cuéntalo “acaba por desencadear a vontade de outras pessoas dizerem ‘comigo aconteceu o mesmo’”. A cofundadora da UMAR revela que “temos situações graves que têm de ser denunciadas. Isto dá coragem para que mais mulheres denunciem situações de violação”. No entanto, ressalva, “não é fácil, já que tem que ver com a intimidade” e é feito “por alguém de fora”.
Relativamente ao elevado número de denúncias que surgiram nos últimos dias no Twitter, Manuela Tavares afirma que “nada nos diz que em Portugal também não haja muitas situações semelhantes, mas estão muito ocultadas”. Salienta que as duas sociedades são parecidas e que, em relação ao femicídio, “a taxa de incidência em Portugal até é maior”. Manifestações pela Europa A sentença dos membros do grupo Manada (como se autointitulavam no WhatsApp) gerou uma onda de indignação em Espanha, que se estendeu à Europa, com manifestações em várias capitais, entre as quais Lisboa, sob o lema “Não é abuso, é violação!”.