Diário de Notícias

Os limites da comédia

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Deviam ter feito mais pesquisa antes de me pedirem para fazer isto”, lançou a comediante Michelle Wolf, antecipand­o a reação ao que iria dizer no tom de voz arrastado com que fez implodir a Gala dos Correspond­entes da Casa Branca. A sala, cheia da elite de Washington, DC, titubeou entre os olhos arregalado­s, o silêncio e o escapar de expressões de espanto. Não houve gargalhada­s gerais, porque Michelle Wolf rebentou com toda a gente neste número de stand-up que ficará para a história.

Os meios de comunicaçã­o foram um dos principais alvos de MichelleWo­lf, de forma bastante certeira. “Vocês estão obcecados com Trump. Namoraram com ele? Porque fingem que o odeiam mas penso que o amam. Ninguém nesta sala quer admitir que Trump vos ajudou a todos”, atirou. “Ele ajudou-vos a vender jornais e livros e televisão.Vocês ajudaram a criar este monstro e agora estão a lucrar com ele.”Wolf fez piadas com a CNN, a Fox News e a MSNBC. Também passou pelos democratas, dizendo que era difícil gozar com eles porque “nunca fazem nada.”

No entanto, a maior torrente de críticas vai para os comentário­s feitos sobre a porta-voz da Casa Branca Sarah Huckabee Sanders e a conselheir­a presidenci­al Kellyanne Conway. “Adoro-a como Aunt Lydia em The Handmaid’s Tale”, disse sobre Sanders, referindo-se à odiosa personagem que controla as mulheres férteis na série da Hulu. “Gosto da Sarah. Acho que é engenhosa. Ela queima os factos e usa a cinza para criar um perfeito olho esfumado.” Wolf referia-se à forma como Sanders manipula os factos nas conferênci­as de imprensa, mas por algum motivo muita gente assumiu que estava a fazer pouco do seu aspeto físico.

Sobre Kellyanne, pediu que deixassem de a convidar para programas televisivo­s. “Tudo o que ela faz é mentir”, apontou. “É como aquele velho ditado, se uma árvore cair na floresta, como é que pomos a Kellyanne lá debaixo? Não sugiro que se magoe, apenas que fique presa. Presa debaixo de uma árvore.”

Donald Trump foi um alvo frequente, claro, mas há pouco que uma comediante possa dizer agora sobre ele que ainda surpreenda. As anedotas passaram por Ivanka Trump, “tão útil para as mulheres como uma caixa de tampões vazia”, o vice-presidente Mike Pence, Paul Ryan, o caso Stormy Daniels e outros temas da política americana.

“Sei que muitos de vocês são super antiaborto, a não ser que seja para a vossa amante secreta”, disse, causando apoplexias aos conservado­res antiaborto na sala. As críticas têm vindo sobretudo da direita, mas também de liberais e jornalista­s, que considerar­am a performanc­e de mau gosto e inapropria­da. É preciso uma dose significat­iva de hipocrisia para despejar esta indignação em cima de Michelle Wolf, uma comediante que foi contratada para fazer exatamente o que fez numa gala em que se celebrou a liberdade de expressão.

Dizer que há uma linha de decência que não deve ser ultrapassa­da numa gala como esta até podia ser válido – se Donald Trump não tivesse apagado todas as linhas. Se não tivesse chamado cadelas a mulheres, se não tivesse feito pouco do aspeto de Hillary Clinton, se não tivesse gozado com pessoas com deficiênci­as, numa lista de insultos gratuitos e constantes com os quais muita da gente que está hoje ofendida foi conivente. O que está a acontecer nesta Casa Branca não é normal e o próprio presidente não foi à gala porque odeia (quase) toda a imprensa.

O número ofensivo de Michelle Wolf encaixa-se bem nesta era do pós-politicame­nte correto por que clamaram os apoiantes de Trump. As pessoas queriam o direito de dizer o que pensam sobre gays, imigrantes e outras raças e maravilhar­am-se com a falta de filtro de Trump. Só que não querem que lhes façam o mesmo.

Temos, como animais políticos, esta natureza de não dar ao outro lado o benefício da dúvida que consignamo­s ao nosso. É isso que torna esta guerra cultural tão consequent­e na política: a ideia que as nossas críticas são todas aceitáveis e que as dos outros são todas horríveis. De que devemos poder dizer o que queremos sobre os outros, mas ai de quem nos “falte ao respeito”. Se este é um país que escrutina com maior ferocidade o que uma comediante diz do que o que presidente faz, para a próxima convidem um mimo.

ANA RITA GUERRA em Los Angeles

JORNALISTA Dizer que há uma linha de decência que não deve ser ultrapassa­da numa gala como esta até podia ser válido – se Donald Trump não tivesse apagado todas as linhas

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