Cientistas pedem menos burocracia, concursos anuais e planeamento
É num clima de “grande incerteza, desgaste e frustração” que um grupo de 30 investigadores se dirige ao país e ao governo
Elvira Fortunato conquistou recentemente uma bolsa de 3,5 milhões de euros do Conselho Europeu
CARLOS FERRO e JOANA CAPUCHO Os cientistas portugueses acusam o governo de estar a “matar a ciência” devido aos atrasos, burocracias e falta de planeamento que enfrentam no seu dia-a-dia. E para mostrar essa frustração divulgaram um manifesto em que denunciam o que consideram estar mal no setor.
“Há bolseiros da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que se candidatam a um contrato pago pela mesma instituição no âmbito do emprego científico, e a meio do processo pedem-lhes o comprovativo do doutoramento. É surreal. A instituição que lhes paga a bolsa [de pós-doutoramento] pede-lhes um comprovativo do grau para serem elegíveis para concurso.”
É a cientista Elvira Fortunato quem fala, uma das proponentes do Manifesto Ciência Portugal 2018, lançado ontem por cerca de 30 pessoas ligadas à comunidade científica, que ao final do dia já tinha rmais de 2000 assinaturas. Dirigindo-se ao governo e à Assembleia da República, pedem simplificação de procedimentos, concursos de bolsas e de contratação regulares, previsibilidade de financiamentos, transparência na avaliação.
Com a alteração das regras de
milhões para financiamento O concurso de Investigação e Desenvolvimento Científicos (IC&DC) tem um investimento previsto para três anos de 375 milhões de euros. contratação pública, introduzidas em janeiro, algumas instituições de investigação ficaram bloqueadas, porque não conseguem comprar os materiais, consumíveis e serviços de que precisam, devido aos limites por fornecedor, que consideram baixos. “Os procedimentos não podem ser aplicados à investigação científica. Há laboratórios a parar. São muitas imposições”, critica Elvira Fortunato, vice-reitora da Universidade Nova de Lisboa (UNL).
Lembrando que os projetos europeus “têm prazos”, a investigadora do Departamento de Ciência dos Materiais da UNL sublinha que é uma situação “grave e desgastante”. Fala de uma “indefinição”, que se prende também com “falta de estabilidade e regularidade” nos concursos.
Em matéria de concursos, Maria Mota, diretora executiva do Institu- to de Medicina Molecular, lembra que a comunidade esteve “dois anos e meio sem a abertura de concurso para projetos científicos”. Quando abriu, prossegue a proponente do documento, tinha novas regras e características diferentes dos anteriores. E, por esta altura, ainda há investigadores que não sabem a resposta à candidatura.
Apelando à previsibilidade, os autores do manifesto consideram que “os concursos de projetos anuais, em todas áreas científicas, devem ser abertos sempre na mesma data, com resultados divulgados de uma só vez, em prazos previamente estipulados e cumpridos”.
Pedro Magalhães, investigador no Instituto de Ciências Sociais na Universidade de Lisboa, que também assina o documento, destaca que a comunidade científica está “mais preocupada com o futuro do que com o passado”. “As instituições, os centros de investigação e os grupos precisam de previsibilidade para tomarem decisões. Não se trata tanto de pedir mais ou menos dinheiro. As pessoas tem de ser capazes de planear as suas vidas, de se moverem num contexto estável”, frisa. Para os cientistas, é “fundamental e urgente” que haja “financiamento consistente e transparente, com pelo menos um concurso anual de projetos para todas as áreas científicas”. Mónica Bettencourt-Dias, diretora do Instituto Gulbenkian de Ciência, explica que não está em causa o pedido de mais financiamento, “mas que as coisas sejam organizadas de forma previsível, planeada e menos burocratizada”. Sair de Portugal A bióloga fala de um clima de “incerteza na ciência”, o que choca com aquilo que deve ser a investigação, pois esta “exige tempo e planeamento”, “não se compadece com paragens e recomeços”. Mónica Bettencourt-Dias salienta que “quem é competitivo e olha para um sistema em que não consegue prever o que se vai passar, não o acha atraente”. É também por isso, diz, que muitos investigadores têm estado a sair de Portugal.
Este é, segundo Maria Mota, “o grito do Ipiranga” dos investigadores portugueses, que estão “especialmente preocupados com o futuro”. Pedem uma “organização racional”, para que não se continue “a matar a ciência”.
Ao DN, o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior diz que apoia o “ativismo científico” e pede muito realismo para fazer da ambição dos cientistas e de todos nós uma realidade. “Não basta pedir, é preciso fazer acontecer e foi para isso que vim para o governo”, sublinha Manuel Heitor, que assina o manifesto na qualidade de investigador do Instituto Superior Técnico.