Diário de Notícias

A morte segundo Júlio Pomar: “Descansar, rapazes”

“Ajudou a história de arte portuguesa a construir-se com ele.” O artista, livre na obra e na vida, morreu ontem, aos 92 anos

- MARIANA PEREIRA

Nome? “Pomar para os de fora, Júlio para os íntimos.” Para uns terá morrido Júlio, para a maioria morreu Pomar. A referência é do Auto-retrato, citado na revista Espiral do Tempo. É ali ainda que diz quanto à morte – adivinha-se o seu sorriso: “Descansar, rapazes.” O descanso chegou ontem, aos 92 anos, depois de um internamen­to prolongado no Hospital da Luz.

“Trabalhou quase até ao fim da sua vida”, diz ao DN Sara Antónia Matos, diretora e curadora do Atelier-Museu Júlio Pomar. “Foi um pintor do movimento, da dinâmica, procurava a gestualida­de, as suas figuras saltavam da tela como que para o espaço do espectador. Penso que todo o percurso dele foi no sentido do movimento: foi para olhar para a frente e não para trás. Acho que o nosso dever será sempre de olhar para a frente, e não para trás, sempre no sentido de perceber o que é que a obra dele semeou na história da arte.”

Júlio Pomar nasceu em 1926 em Lisboa. Se o tivéssemos visto em criança, apanhá-lo-íamos “de rabo para o ar, a fazer bonecos em todos os papéis que apanhava”, contou ao DN em 2016. “Era uma criança muito metida comigo, que se refugiava no gosto e na prática quase excessiva do desenho.” Essa criança haveria de “ajudar a história de arte portuguesa a construir-se com ele”, segundo Sara Antónia Matos.

Almada Negreiros foi a primeira pessoa a comprar-lhe um quadro, Os Saltimbanc­os. Pomar tinha 16 anos e expunha num ateliê na Praça das Flores. O pintor passou pela Escola António Arroio e pela Faculdade de Belas-Artes, mas dizia que Velázquez lhe ensinara mais do que todos os professore­s que teve.

Jovem opositor ao regime salazarist­a e membro da comissão central do Movimento de Unidade Democrátic­a (MUD) Juvenil, Pomar esteve preso em Caxias durante quatro meses. Tinha 20 anos. Um dos seus parceiros de cela era Mário Soares, de quem permaneceu amigo até ao fim da vida deste. Traçara o retrato do amigo enquanto jovem, na prisão, e viria a fazê-lo muito mais tarde, no início dos anos 1990, criando o retrato presidenci­al de Mário Soares que hoje figura em Belém, e que na época causou grande polémica por contrastar com a habitual seriedade e formalismo com que os restantes presidente­s portuguese­s foram pintados. Soares ria-se.

O artista rebelde

“Nunca ouvi o Júlio queixar-se. Tomou isso como um dever de cidadania. Esteve preso, exilado. O que o Júlio queria era liberdade. Isso era fundamenta­l”, afirmou Carlos do Carmo, uma das vozes que interpreta­ram fados escritos pelo artista.

A prisão valeu-lhe a interrupçã­o da pintura dos frescos de mais de cem metros quadrados no Cinema Batalha, no Porto, que fora convidado para pintar com apenas 20 anos. Dois anos depois, a obra era tapada pela censura do Estado Novo. No ano passado, Rui Moreira anunciava que o pintor iria regressar aos murais na sequência da recuperaçã­o do cinema pela autarquia. “Ficou muito contente quando lhe falei do projeto do Batalha, acreditou que iríamos concretiza­r o restauro”, fez saber o autarca do Porto.

“Nós devemos a Júlio Pomar a abertura de Portugal ao mundo e a entrada do mundo em Portugal, desde logo, durante a ditadura, não apenas como pintor, não apenas como desenhador, mas como grande personalid­ade da cultura”, afirmava ontem Marcelo Rebelo de Sousa, falando desse artista “profundame­nte rebelde”.

Obras como O Ganhadeiro (1946) e O Almoço do Trolha (1946-50) são tanto símbolos maiores do neorrealis­mo português e da juventude de Pomar como do protesto social que encerravam em si. Vejase, por exemplo, o rosto marcado do trolha. Abandonado o neorrealis­mo, seguem-se séries onde o movimento é um dos traços predominan­tes, como Tauromaqui­as ou Les Courses, que representa­va corridas de cavalos e que Pomar expôs em Paris, cidade para onde partiu em 1963, aos 37 anos. Vieram depois trabalhos que experiment­avam novas linguagens – entre elas a assemblage. Le Bain Turc, d’après Ingres (1971) seria mostrado no Museu do Louvre numa exposição dedicada ao mestre francês Ingres.

A ligação à literatura A literatura marca fortemente a obra de Júlio Pomar. Captou Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, por várias vezes, a primeira das quais em 1959, para a ilustrar a edição traduzida por Aquilino Ribeiro, mas também A Divina Comédia de Dante; retratou escritores como o amigo Lobo Antunes ou Camões e Fernando Pessoa (na estação de metro de Alto dos Moinhos, em Lisboa). Ele próprio escreveu poemas, reunidos em Alguns Eventos (1992) e TRATA do DITO e FEITO (2003).

Nos anos 1990, Pomar expõe em Paris Los Indios e Les Indiens, retratando aqueles que conhecera ao passar algum tempo no Alto Xingú, Amazónia. Foi ao saber que tinha um cancro que se lançou à pintura das obras de grandes dimensões. Além da pintura deixou desenho, gravura, escultura, tapeçaria ou trabalhos de cenografia. Numa visita do DN ao seu ateliê em dezembro de 2016, perguntámo­s-lhe em que trabalhava. “Vai-se rir. Estou a fazer um retrato de família que me foi encomendad­o por um senhor que tem uma coleção de pintura. Estou sensivelme­nte há um ano a fazê-lo, quase exclusivam­ente. O senhor está ansioso. E o quadro vai-se transforma­ndo, transforma­ndo...” E acrescenta­ria, falando das limitações da idade: “Gostaria de trabalhar todos os dias, trabalho sempre que posso.”

Em 2004 instituiu a Fundação Júlio Pomar e, em 2013, o Atelier-Museu com o seu nome abriria portas, num projeto assinado por Siza Vieira na Rua do Vale, em Lisboa, mesmo em frente à casa onde vivia com a mulher, Teresa Martha, e tinha o seu ateliê.

Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito em 1989, com a Grande-Oficial da Ordem da Liberdade em 2004, ano em que, em França, foi ordenado Chevalier de L’Ordre des Arts et des Lettres. Aos 90 anos, dizia que ainda se sentia como um touro a entrar na arena. “Ainda me sinto assim, estonteado por aquilo que o ver me revela.”

“Parecendo que não, é uma alegria saber que ele partiu num dia de sol e de primavera. Ele havia de gostar de saber isso”, disse o escultor Pedro Cabrita Reis à Lusa. O corpo do artista plástico ficará hoje em câmara-ardente no Teatro Thalia, Lisboa.

“Nós devemos a Júlio Pomar a abertura de Portugal ao mundo e a entrada do mundo em Portugal, desde logo, durante a ditadura”

MARCELO REBELO DE SOUSA

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

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Júlio Pomar a trabalhar em Paris, em 1980 (em cima), e, quase 30 anos antes, a pintar um painel decorativo numa residência particular (em baixo à esquerda) ainda em Portugal. Na inauguraçã­o do polémico retrato presidenci­al de Mário Soares e no seu...
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